domingo, 22 de dezembro de 2013

O último dia de solidão

               O livro da vida de um solitário foi escrito a partir de um estilo curioso e rebuscado, repleto de infindáveis vocábulos e pela filosofia dos ascetas. Um romance sem uma trama e com apenas um personagem, sendo, de fato, simplesmente um retrato psicológico de um certo alguém que buscava alcançar o lirismo e a suprema criatividade mediante uma experiência de solidão insuperável. Uma vontade irresistível de estar só, completamente só; uma ansiedade de conversar consigo mesmo em uma estreita câmara sufocante, tão sombria e lancinante, mas que excitava a criatividade da alma como uma animação poética. O silêncio da noite era profundo e sepulcral...   
              Os dias eram frios, o ar tétrico, a casa silenciosa. O brilho do sol já havia se apagado completamente. No alto do firmamento, onde o azul era mais profundo, três ou quatro estrelas ainda resplandeciam, mas foram apagadas pelo toque de um anjo mau. O céu era agora um fundo escuro de uma só tinta. A luz triste da lua filtrara-se pelas aberturas do telhado, resvalando com seu fulgor acetinado à fina cortina de seda branca da janela, incidindo sobre a face de um anacoreta. Sentado à beira da cama, em uma alcova soturna como a noite, encontrava-se um jovem em pleno frescor da adolescência, branco, delgado, rosto cravado de espinhas, boca em ruínas, vasta cabeleira, toda cacheada e reluzente pela untuosidade. Os seus olhos eram castanhos, possuidores de um lívido brilho de mistério. Ele observava taciturno o horizonte, que se tornava cada vez mais negro, a mesma cor que matizava o seu destino. Não ouvia nada, somente o eco dos seus pensamentos.
O quarto possuía um duro aspecto nauseabundo. Longas teias de aranha pendiam sobre todos os cantos das esquálidas paredes, como cortina de crepe esfacelado. A sua porta, que selava o seu futuro e a sua felicidade, era como a tampa de um túmulo. Lá, envolto numa duplicidade de angústia e mórbido prazer, ele permanecia esquecido, mesmo no almoço ou no jantar, com os pés cruzados, a cabeça molemente caída sobre o peito, num aborrecimento que parecia infinito. Pouco dava importância aos estudos; era desleixado, preguiçoso, vivendo apenas para a solidão e para seus romances, vivazes companheiros, aglomerados e derreados por uma imensa prateleira, que parecia interminável tal qual o seu desterro. Brotava o talento original e fecundo de um poeta...
Ele folheava com enlevo aquelas páginas amolgadas, tentando encontrar nelas o lirismo, o amor e o sofrimento que as almas simples procuram na literatura. Ele assimilava as inúmeras narrativas que lia e muitas que criava, buscando um mero acalento, uma fuga das tristezas do seu exílio, um refúgio tão aconchegante como o da noite, protegendo-o do desvairo. O deleite era sulcado pela melancolia...
O carregado odor de punição do seu quarto parecia prender-se às folhas e a perturbar a sua mente. A simples cadência das palavras, a sutil monotonia de suas frases, tão cheias de complexos e vocábulos elaboradamente repetidos, produziam no cérebro do rapaz, enquanto ele passava de capítulo em capítulo, uma forma de delírio, uma doença de sonho, tornando-o indiferente aos dias que desvaneciam e as sombras que se arrastavam. 
Parecia que a fuga do tempo havia parado, como se algum encanto o tivesse rompido. Entre as quadrelas caiadas do seu infortúnio, o mundo estagnava-se numa apatia horizontal e as horas passavam inutilmente. Decorriam-se dias, meses e anos, e ele continuava na mesma irresolução; a fisionomia lânguida, as narinas dilatadas pelo hálito quente e doentio; o corpo tomado por um completo fastio, que lhe dava espreguiçamento de febre e má vontade. E, assim prostrado, deixava-se ficar sob os lençóis, tolhido de enleio e isolamento. Sua face era imóvel como um molde de cera, tendo a impenetrabilidade oriunda da própria melancolia. Os grandes paroxismos da cólera, e o mais singelo instante de alegria, ali deviam se amortecer inapercebidos, na lassidão dos tecidos, sempre impassível e rígida, assim como o semblante dos heróis romanescos. Ele já não achava posição no seu leito; virava-se da esquerda para a direita, deixando afinal pender a cabeça e olhando para o chão, angustiado pelo tédio. Os dias eram longos e aterradores.
               Aquele sorumbático rapaz conjecturava que o mundo lá fora poderia ser de felicidade, mesmo para os seres de sorte mediana. Pensava na cidade ao crepúsculo, os doces anseios pueris, a passagem das estações, jovens casais caminhando jubilosos pelas alamedas. Todos, de um modo ou de outro, tinham algum motivo, ainda que mínimo, para sorrirem. Todos, menos ele. Por um instante, ele sentiu que o duro fardo do seu íntimo estava para se romper em pranto. Foi aí então que dos fundos recessos do seu âmago saiu, límpido e tremulante, um novo pensamento: a morte.
A felicidade externa era imperceptível aos seus sentidos. Molestado pelos devaneios, apreensivo pela ideia de combater um ser onipotente e maligno e humilhado pela dúvida de si mesmo, ele percorria pelo quarto, meditativo, com um andar vagaroso, acompanhado de suspiros e descaimentos de pálpebras. Às vezes, ficava longo tempo debruçado na janela, a fitar o deserto do tempo, percorrendo com o seu olhar cansado a funda paisagem, que se esbatia nas meias-tintas de um horizonte tenebroso. As ruas estavam abandonadas; ao longe, ladrava consternadamente um cão, e, de vez em quando, ouvia-se os ecos de uma música longínqua - e ele, ali, nas trevas do seu ergástulo mental, sozinho como nunca. Mesmo com a possível ventura do mundo, ele sentia-se sempre sobre a orla de um mar cinzento e uniforme, sem casas, árvores ou pessoas ao seu redor. Ninguém o via, ninguém o ouvia, ninguém o atendia. Aquilo deveria ser o inferno!
              Ele estava esgotado. Queria acabar com aquela obsessão terrível, aquele suplício insuportável. Desejava, consigo mesmo, ver terminada aquela agonia; queria fugir daquela prisão; resfolegava, sem ousar mexer com a cabeça, olhando para os lados, de esguelha, procurando uma saída, de algum lugar onde se escondesse ou de alguma força maior que o arrancasse dali. A estrada de sua vida parecia terminada.
No meio das narrativas romanescas, surgia uma inspiração...
O último dia de sua solidão parecia ser igual a todos os outros, se não fosse por uma estranha luz que suplantasse o seu exílio de sombras. O horizonte agora já não era tão assustador como antes. As estrelas, da eterna imensidão do espaço, agora flanavam sobranceiras, cheias de raios e trilhos, parecendo indicar o caminho de uma morada inalcançável. Ele lia através da penumbra, hipnotizado pelas imagens e descrições de uma terra fabulosa, sem as misérias e lágrimas dessa existência; um lugar de ventura, onde a dor e o sofrimento estivessem apenas contidos nas estórias. Aqueles personagens, assim como ele, eram capazes de criar beleza dentro de um quadro lastimável. Parecia que ele se fazia novamente amigo da realidade, sorvendo a vida em largos haustos, como quem acaba de sair do cárcere e saboreia a liberdade. Ele admirava aquela cintilação das estrelas com êxtase, de mão no queixo, o cotovelo no ar. Ela estava desaparecendo, seus olhos brilhavam intensamente, a ávida obsessão arregaçava-lhe o nariz, e as suas pernas queriam voar até lá.
             Como num empolgante lance de relato literário, ele se viu como um pássaro, com asas brancas, abertas, adejando por entre as nuvens brancas da incompreensão humana, chegando até uma morada onusta de perfeição e saber. Uma elevada terra de encantos e contrastes, que guarda com esmero as histórias dos povos de diferentes matizes. O panteão onde vivem os heróis e os bárbaros, os cavalheiros e os desapiedados, o real e o romanesco. Ao apreciar aqueles indeléveis vocábulos, sua fantasia converteu-se em um corcel orgulhoso e petulante, capaz de romper barreiras impenetráveis, escalar montanhas inconquistáveis, ou até mesmo alcançar o céu, imensidão azul onde se descobre o heroísmo desejado e inatingível, o amor suspirado e trágico. As suas mensagens, que variam entre a delicada melodia das rimas, o estoicismo dos macambúzios paladinos e a insânia das eras imemoriais, revelam-se como aspirações de ideais fantásticos. Abaixo de Deus e acima dos homens encontra-se o lar de uma divindade benfazeja, dotada de asas que exalam o mais poderoso dos bálsamos: a imaginação.
As batidas na porta despertaram-lhe do sonho. Ele ainda estava trancado em seu quarto. Despiu-se, olhou mais uma vez para o tempo e deitou-se. Abriu por hábito um livro; todavia, no fim da primeira página, seus olhos pareciam sonolentos. Fechou a janela. E então sentiu um bem-estar infinito, extremamente agradável, como nunca em sua vida. Abraçou-se aos travesseiros e, antes que a solidão pudesse lhe sobressaltar o espírito novamente, ele dormiu. Assim como ele, todos os seus devaneios e maus pensamentos também recolheram-se às suas alcovas.



Otávio Camilo

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Os vetustos templos de Natal

                    “A ondulação magnificente do rio, as lôbregas lufadas das procelas, os murmúrios inebriados e angustiados das multidões, o fraco ressoar das palavras incompreensíveis dos oprimidos. Um só homem pregando além dos limites de infinitas trevas. Assim elas nasceram, e serão eternas como as pedras fincadas nesse chão. A partir das narrativas de suas origens, podemos contar toda a história de um povo. Templos admiráveis, delineados pela faina de inspirados cinzéis. Devido aos seus tombamentos, as mãos destruidoras dos homens jamais poderão tocá-las novamente, assim como nunca poderão tocar o céu” – Dom Matias Patrício Macêdo, Arcebispo de Natal.
                    Rompem-se as barreiras funestas do tempo. Volvemos até o berço de uma cidade provinciana do século 16, negra e religiosa, quase tão misteriosa como as águas do grande rio que a banha. Pelos seus firmes e sobranceiros logradouros estabeleceram-se, apartadas por uma ínfima distância, as formidáveis paredes de alvenaria atemporal. Uma das artes superioras da criação humana, que desdenha dos séculos, da invencibilidade das eras, e inebria como um arrebatamento. Suas edificações resistiram estoicamente à força arbitrária do tempo; seus muros alçaram-se sólidos, modestos e de gosto severo. Elas são perpétuas e tão alvas como as nuvens, pontilhando o espaço, tornejantes, à feição dos pendores; erigindo-se sempre, hirtas sobre os despenhadeiros, fixando-se nas alturas, ganhando formas pouco a pouco no manto azul do firmamento. Naquelas sucessivas e íngremes veredas de sílica, por onde passariam chusmas imensuráveis em séculos de devoção, a religiosidade dos colonizadores, dos ricos donatários, dos pobres e dos escravos ali talhou, em milhares de alvíssimos seixos, estradas que pareciam alcançar o céu. Vede, transpondo os umbrais da eternidade, as mais antigas igrejas de Natal...

Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação
                   Já ressoavam os clangores da aurora de junho, e lá estava ela, solitária, com uma formosa capitania crescendo ao seu redor. Por entre as árvores ouvia-se a harmoniosa sinfonia dos pássaros e o troar solene da primeira missa, que reboavam longamente por todo o âmbito dos escarpados declives da Cidade Alta, na ressonância confusa que elevava-se das margens do Potengi. Um coro de vozes extasiadas e aflitivas esbatia-se na mudez da terra ainda pouco povoada, repercutindo pelas alamedas desoladas. Diante dos canhões, negros andrajosos caem pela fúria das vergas em seus dorsos, enquanto outras pessoas abriam os braços nus e atiravam, rígidos, acima da cabeça, num incontrolável desejo de tocar o empíreo; no mesmo instante, rápidas sombras deslizavam sobre o chão da praça vermelha, engatinhando ao redor da multidão, envolvendo a todos em um abraço fraterno. Ali, naquele lugar que hoje homenageia o revolucionário que sucumbiu encarcerado, foi esculpida a matriz dos santuários. No período da batalha entre lusitanos e holandeses, sombreava-se uma capela feita de palha, barro e sangue. Cada ponta daqueles ramos secos e entrelaçados apontava na direção de um novo mundo. Eis a santidade que emergiu das águas...
                   Como uma estrela imersa no centro da cidade, ela apresenta-se com sua portentosa torre cimeira, iluminada pela placa que remonta sua origem, escrita com filetes de ouro. Atualmente, em contraste com a história de sua fundação, os fiéis entram na Igreja de Nossa Senhora da Apresentação pelo seu ádito principal, encimado por um óculo central e por um frontão triangular. Os fâmulos recebiam as pessoas com ternura e prontidão, no mesmo momento em que um raio de sol brincava nos arcos do medalhão interior, onde estão representados vários trechos das escrituras bíblicas. A antiga catedral, como chamam os paroquianos, é modesta, mas muito bem tratada, chamando a atenção de todos para os castiçais de prata, para as finas toalhas da cor do marfim, e também pelos diáfanos pavimentos dos seus transeptos. 
                  Nesse sítio, cheio de passado, alguns devotos, trazendo nas bocas sorrisos constantes e veneradores, prostravam-se em orações; outros davam passos silenciosos, indo e vindo, desde a frontaria até o suntuoso altar de alvenaria, próximo ao funéreo chão dos grandes vultos. Ao fundo, ladeada por relíquias que são preservadas como tesouros, pendia uma imagem de Nossa Senhora com uma coroa na cabeça, e uma estrela dourada cravada na alvura do seu manto. A virgem coroada, rainha e triunfante, era para dona Teresa de Andrade, 65, a legítima deusa católica, e não a estátua foragida que caiu nos ramos de palmeira de um estábulo. Aquela senhora, lançada em pranto aos pés sem vida da imagem, era o modelo ideal do infinito fervor ao culto. Ela era antes baixa do que alta, delgada, muito bem composta, vestida com singeleza e austeridade. “Esse templo é inundado de perfumes, esplendores e harmonias. Assim como Eva, quando estava exilada no paraíso, gosto de caminhar pela paz desses corredores, regando com as lágrimas a figura da minha querida mãe, companheira e confidente das alegrias do meu passado e das amarguras do meu presente”, confessa emocionada. Um toque de sol resvalou na sua fronte lamuriosa, maculada pelo destino para receber melhor a coroa do martírio. Subitamente, entreabria-se o quadro sonoro dos sermões, rompendo o coro das lamentações.
                   Olhos jubilosos e confrangidos fitavam o padre Flavio Herculano, sacerdote de fisionomia meiga e franca, que declamava à plateia com um sorriso antecipado aos lábios. Ele enternecia seus expectadores mediante a leitura musical das sagradas escrituras, como se eles escutassem a aprazível melodia das trombetas dos anjos. Ele expressava-se com uma leve nuance nostálgica e prazenteira: “o universo sacrossanto dessa igreja me encanta; a divindade desses muros, esse ar patente de singular religiosidade, os rostos desconhecidos e fascinados. Apesar das mudanças arquitetônicas impostas ao nosso templo nos últimos anos, os seus elementos originais sobreviveram, e estão guardados sob a proteção dessa bela cimalha. Eu me considero um guardião desse tesouro, e do que ele simboliza para a tradição do povo potiguar”, relata enlevado. O evangelizador às vezes interrompia a explanação dos salmos, advertindo os seus ouvintes para deixarem a antífona aos olhos; logo depois recitavam o cântico novamente. Era a eterna aleluia dos fiéis.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
               Ao tanger das badaladas de uma nova aurora, o rio dos camarões, em sua vasta extensão, permanecia tranquilo, depois de gerações de bons serviços prestados àqueles que contemplam suas bordas. A natureza sorria em mais uma airosa manhã de domingo. Um sino de bronze, estampado no cimo de uma torre quadrada, soava acolhedor o seu estridente tinido. O vitorioso astro rei estava a pino e, por entre a copagem escura de uma mangueira, os seus dardos de fogo incidiam sobre as cabeças dos indivíduos que caminhavam em cima do outeiro. Na tranquilidade daquela sombra morna, os ecos de outrora eram ouvidos no incessante retinir dos martelos de homens negros, erguendo seus punhos contra as pedras encarnadas da submissão. Eles eram altos, espadaúdos, perfis de touros, pescoços de Hércules. O canto daqueles incansáveis trabalhadores, numa mistura de clareza e hesitação, acompanhava o marulhar dos ventos, ondeando pelas inclinações, sorumbático e cruciante, como um coro de penitentes. Era a opressão para reis e rainhas de pátrias longínquas. A força digna do labor, maculada pelo chumbo em seus pulsos. O suor dos escravos construiu o mais humilde dos templos.
                   Olhares adoradores, de deleite, penetrantes, que subiam, furavam o adro como a extrema agulha da devoção. Antes da singular liturgia, acima das dádivas que jaziam no piso ladrilhado, e rodeados pelas quadrelas laterais que escondiam as alas primitivas, os devotos apreciavam taciturnos as colunas de cantaria que sustentavam a singeleza da abóbada e do teto. Além das profundas reentrâncias de suas ventanas, observa-se a fachada de um opulento palácio, sobressaltado pelo mistério e pela morte. Do seu pórtico, é possível apreciar o crepúsculo do imenso tritão, a pedra rudimentar da cruz centenária e a colossal patrona disposta no pilar.
                   Súplicas, gestos, vestimentas... As pessoas remontavam ares de tempos idos, exalando um aroma de clássica existência, exibindo uma variedade de vida à igreja. Algumas vetustas damas, diante da santa negra coroada por um baldaquim de mármore, perfilavam-se em uma linha de orações; seus lábios eram secos, rachados, mostrando a brancura dos dentes. Elas sorriam como em um sonho jocoso, embevecidas pelo tom mágico dos vocábulos de uma língua morta. “O latim é o idioma oficial do catolicismo. A nossa celebração eucarística é idêntica a que era festejada há 1000 anos. Além disso, nas outras igrejas existe um amplo alarido, impossibilitando uma meditação adequada, um dos dogmas do nosso pároco”, conta dona Andréia Albuquerque, 62, uma das senhoras que preparava-se para a missa Tridentina. A gentil mulher falava desatenta, assimilando com a testa franzida as palavras de um moderado evangelista, na abstração que provocava o rito romano. “Gloria patri, et filio, et spiritui sancto, sicut erat in principio, et nunc, et semper, et in saécula saecolórum. Amen”.  
                   Um provecto homem se pôs de pé; caminhou a passos vagarosos até o altar, carregando em seus curtos braços a epístola da solenidade. A maioria dos fiéis, no templo, usavam brancas indumentárias, da mesma cor do véu das mulheres e da batina circunspecta do sacerdote; um revestimento exterior de divindade com que se apresentava. Um manto transparente, da natureza de um tecido de brisas entrançadas, que ele passava aos ombros, revelando do estofo nada mais do que o predicado de majestade. Sua face era imberbe e desfeita em rugas.
                   Aquele orador, que extasiava a todos com a altanaria estoica de um profeta, é o Monsenhor Lucilo Alves Machado, 85, Reitor da Igreja do Rosário. O estuário do Potengi refletia no seu semblante comedido, e a sua voz parecia infinita como o curso daquelas águas. “A missa em latim é um ritual que havia se perdido por entre as ruínas do tempo. Suas características reflexivas me suscitam o deslumbramento. Ela faz parte da minha ordenação. Eu a celebrei por mais de dez anos. Agora, com a permissão de Deus e do santo Papa, os fiéis a pediram, e eu atendi”, revela o padre.
                   Ao término da missa, estando de costas para a atenciosa turba, ato que representa uma das particularidades da cerimônia, o Monsenhor Lucilo senta-se exausto em um trono de madeira carcomida, parecendo estar cansado da sua obstinada tarefa, assim como aqueles que solevaram o seu templo.

Igreja de Santo Antônio (Igreja do Galo)
                O aristocrático galo ergue sua poupa de bronze no alto de um campanário feudal, revestido de azulejos reluzentes. O seu límpido trinado anuncia o descanso do sol e o início de uma nova celebração no mosteiro dos mendicantes, uma pérola matizada pelo branco das nuvens e pelo azul do firmamento, mas que arde pelo fogo das tochas na cimalha. Os fiéis, ao entrarem naquele universo arabesco de enigmática religiosidade, cessam em um crispado de reverência, na observação minuciosa dos desenhos em relevo que vão do frontispício até à nave, arquétipos de beleza e imponência. As palavras eram balbuciadas e os dedos tremulavam. A mesa de sacrifícios é cinzelada em madeira, aparatada pelo cheiro das folhas de acanto, onde os seres derramam o sopro de suas vidas: seus pecados, suas alegrias. Tudo era quieto e sibilino como a sua face principal, esmerado fruto da arte barroca.
                Em caminhada pelo soalho de pedras, as fisionomias dos devotos eram paradoxais como o céu de setembro: nubladas em um momento e brilhantes no instante seguinte. Eles postavam-se fervorosos; nada quebrava o encanto de suas rezas, ratificado pelos brados de louvor, em um refrão ensurdecedor de elocuções articuladas, rápidas e ofegantes. De joelhos, tal qual um anacoreta, em um acanhado confessionário que arrimava-se ao lado do altar de Santo Antônio, padroeiro daquele paço, um anguloso homem espiava a fé e as falhas humanas, concedendo-lhes confissões de culpa. Sua barba é luzidia como a neblina dos devaneios, e ela trajava uma túnica com um capuz, deixando escorrer pelo tecido um cordão de fina seda. Eis que aparece o frade, católico consagrado e herdeiro dos capuchinos, guardiões da sua ordem religiosa.  
                O seu nome parecia contrastar com sua retórica e seus meneios; ele é alto e muito magro. Os raros fios de cabelo que lhe sobraram eram muito bem penteados. Os seus lábios tinham rijos traços. Sua figura dava inicialmente uma aparência de candura, mas essa impressão não fazia suas feições mais doces. Não havia nenhuma simpatia no seu semblante, como se aquela suposta pureza fosse uma couraça que o afastava do mundo, enclausurado entre os ermos corredores do convento de Santo Antônio. “Aqui eu passo as horas cantando como os serafins e tentando ajudar os mais necessitados. Depois de libertar-me da prisão das ideias ingênuas e dos prazeres da carne, me senti repleto de ânimo; antes de andejar pelas galerias solitárias, de me tornar um servo de Deus, nunca havia percebido a imponderável espiritualidade da alma. O vácuo habitava-me por dentro”, declara o frade João da Paz. Anexado ao cavo silêncio da Igreja do Galo, estendendo-se por três fileiras suportadas por resistentes pilares, e acarinhados pelos braços abertos de São Francisco de Assis e Santa Clara, encontra-se um silêncio ainda mais intrínseco, como um poço depois do abismo. Suas paredes eram brancas, tétricas como túmulos caiados. Eram os braços severos da reclusão.
                O toque veemente do clérigo acendeu ainda mais o eufórico cenário, e as esculturas de cera pareciam influir-se de seu espírito ardente. Ele aduzia um indelével talento para se exprimir com pompa e tragédia. Nos bancos, homens e mulheres de diferentes idades e classes sociais recebiam as palavras de fogo do frade como chicotadas nas costas. O vibrante eremita, ao entoar os hinos, enrubescia e de seu rosto rorejavam gotas de transpiração. Sua língua era apocalíptica, e dela o inferno saía mais terrível, expelindo labaredas nos corpos daqueles que não seguissem seus preceitos. “Como não assimilar?!”, indagou a si mesmo Jorge Sampaio, 38, advogado e frequentador assíduo da Igreja do Galo. Sua fala era lenta, arquejante, como se os termos lhe tivessem sido arrancados por um poder sobrenatural.
                O crepúsculo repetia as preces entusiasmadas como num coro esquiliano, sussurrado com persistência, apontando para o primeiro sopro de uma tempestade. A cada frase pronunciada o santuário tornava-se mais escuro, e apenas a fronte de uma moça, lisa e pálida, permanecia iluminada pelos restos de tormenta da tarde. Ela era formosa, e a elevação do seu talhe delgado lhe dava um aspecto superior a todas as demais senhoras ali presentes. No entanto, entre todas as imagens que enfeitavam a igreja, ela eclodia como a mais bela estátua de tristeza, deixando submergir as suas recordações diante de um turbilhão de clamores exaltados.
                O olhar da enfermeira Ana Paula, 29, era daqueles em que se podia ler a viva exacerbação do espírito. Ela cerrou as pálpebras envergonhadas; quando novamente as abriu, todo o segredo que ela guardava assomou em seus olhos consternados e no meio sorriso que veio à flor dos lábios. Aquela expressão de amabilidade era como uma porta abrindo para as trevas. Assim como os versos bíblicos que estavam sendo recitados, a airosa jovem proferiu estas palavras mediante uma tristeza maviosa: “o fel amargo da saudade afogava o meu coração, porém converteu-se em uma torrente de lágrimas mudas e resignadas. A estrela da minha felicidade, fraca e incerta, vacilava na extremidade desse horizonte tenebroso. Logo após o falecimento do meu filho, minha vida se transformou em uma insuportável prisão, desprovida de desejos e satisfações. Nesse lugar de meditação eu finalmente encontrei a paz”, finaliza comovida.  

As três igrejas mais antigas de Natal foram tombadas no final do século passado, sendo a partir de então consideradas como patrimônios culturais do estado do Rio Grande do Norte.

Otávio Camilo