“A importância da lenda da Viúva Machado, para mim, vai muito além da
figura mítica da mulher que comia fígado de crianças. Ela, a lenda, me traz de
volta, como que pelo túnel do tempo, a minha feliz infância. Apesar das
tragédias que aconteceram na vida da dona Amélia, entendo que as lendas do
nosso povo devam ser ressaltadas e difundidas, para que a nossa cultura seja
valorizada” - Zelma Furtado, Presidente da Academia Feminina de Letras.
As lendas correm unidas aos ventos das eras, procurando os clamores reminiscentes, as lembranças
perdidas pelo tempo. Elas se convertem em enigmas fascinantes e criações
fabulosas, andejando pelos prolíferos caminhos da mente humana. Engenhosas
fantasias das narrativas de Trancoso, concebidas a partir da criatividade de
alguns, ou delineadas pelo pernicioso ardil de outros. As lendas podem acometer
de um padecer longo e cruel à vida dos seus personagens, transformando-os nas
mais belas estátuas de melancolia. Elas eram de bronze, e ornavam um imenso
jardim...
O tempo corria, atravessando o espaço com a sua batida
silenciosa. O dia dissipava-se cheio de esplendor e desespero. O céu estava
repleto de estrelas, e a lua resplandecia na noite clara; os pássaros haviam emudecido,
as árvores exibiam-se desnudas, e ouvia-se apenas os longínquos uivos, lôbregos
e desvairados, pelas alamedas desertas. Em uma Natal provinciana, ainda aturdida pelos estrépitos da grande
guerra, a imaginação e os olhares de espanto atravessavam livremente pelas ruas
transbordadas de mistério, subindo lentamente pela íngreme ladeira da Cidade
Alta, até chegarem aos portões de ferro de um suntuoso palacete. Ao longe, ecos
incertos de aflição remontavam através da taciturna escuridão.
O casarão revelava-se magnífico, iluminado como uma visão
fantástica, envolto em brumas sorumbáticas em um ponto obscuro do horizonte. Na
sua frente, o seu pórtico é protegido pela Igreja do Rosário, um dos mais
antigos templos de adoração da cidade. Atrás, das suas janelas, avista-se
barcos aventureiros resvalando sobre a flor das águas do portentoso rio. De
dentro, dos umbrais perenemente fechados pelas sólidas grades, contempla-se a
mistura das estações, gravadas nas imagens de crianças entalhadas em pedra. Naquele
formoso jardim, aclarado pelos raios ardentes e impetuosos do verão, os lírios
de alvura deslumbrante movem-se incólumes pelo harmonioso aroma da primavera.
Diante daquele casarão expandia-se um mistério aterrador. A
aparente tranquilidade da sua natureza parecia negar sua real intenção. As
noites ao seu redor eram de um verde escuro, quase negro, daquela cor sombria
que tonaliza a margem do Potengi. Rostos infantis abertos em êxtase
circundavam-no, atônitos, espiando-o meio a medo e aos berros de suas mães em
desespero: “Saiam daí, meninos, que lá vem o Papa-figo!”. Todas elas contavam
histórias que escutavam, e muitas que inventavam, realizando o sibilino encanto
de transportarem-lhes para um mundo de pavor, uma terra atemorizada por um
monstro lendário. Sua figura era extraordinária...
Dizia-se que ali, naquele lugar que desperta imaginações e
ostenta riqueza, era a morada de um ser horrendo, possuidor de uma mandíbula
implacável, assanhada e devoradora; o seu queixo era enorme, ávido e ossudo,
principiando por sua fronte agudamente pálida. A sua boca não tinha dentes, o
que lhe dava uma aparência ainda mais assustadora, como se ele quisesse engolir
o ar, a terra e todo o vigor pueril (sua principal fonte de energia), numa
tentativa insana de estagnar uma moléstia que o consumia. Um monstro que nem
sangra nem singra, que matava as crianças e as comia, guardando seus restos
mortais em arcas de madeira.
Mas quem era realmente o Papa-figo, essa criatura apavorante
a quem todos temiam? Existia uma pessoa comum por trás da face de horror? A
quimérica fisionomia de monstro pintava-se na expressão amargurada de uma
delicada senhora...
O mito do Papa-figo em nada remete às cativantes aventuras da
ficção ou às narrativas romanescas, estórias em que os protagonistas são
encantadores e irreais. Ele se torna ainda mais intrigante devido à sua funesta
realidade. A difamação dos invejosos quis sujar a dignidade, a piedade de uma
paroquiana que era o modelo entre as mulheres de sua época. Ela andava coberta
de luto sob o sol...
O destino mostrou-se cruel com Amélia Duarte Machado, viúva
de um rico comerciante português. Dona Amelinha, como os mais íntimos a
chamavam, era portadora de um espírito meigo, fino e gentil, não possuindo
expansões brilhantes. Era modesta e às vezes tímida. Embora jamais esboçasse o
mais fugaz dos sorrisos, por causa do seu temperamento e sua ação decidida, ela
conseguia praticamente o impossível: mesmo vivendo cercada de uma fortuna
imensurável, sua generosidade e humildade eram infinitas como a impávida
torrente que perpassava pelos seus olhos. No entanto, os fulgores de sua alma
foram amortecidos por lesivos sentimentos que a circundavam e tragédias que se
sucediam.
A vida de dona Amélia era semelhante à de qualquer outra dama
da sociedade patriarcal daquele período. Cuidava do lar e acompanhava o marido
nas suas idas ao teatro para assistir aos dramas das companhias que vinham da
Europa. Sua graça natural, o primor de suas maneiras, e as seduções do seu espírito,
a distinguiam entre todas as outras como um tipo de elegância superior. Ela
prostrava-se num banho de sensações diversas. Devido a sua reconhecida
benevolência para com os mais humildes e a sua receptividade a ilustres
estrangeiros que dispunham do seu palacete, os seus pares da nobreza
fitavam-lhe com admiração e inveja. Os bailes no Clube Veneza e a suposta
felicidade abandonariam a sua existência, onde a saudade e o pesar se
aninhariam para sempre.
O escritor Luís Gonzaga, 92, amigo dos filhos adotivos do
casal Machado, conta que brincava com seus companheiros de infância na
esplanada do casarão, quando presenciou uma cena que lhe chamou atenção: "a janela se abriu, um rumor qualquer de lá saía, eram como gestos ou palavras de
afeto. Eu vi dona Amélia tomada pela comoção. As lágrimas dançavam na borda das
suas pálpebras. À soleira estava sentada uma mulher, ocupada em tricotar uma
meia, e a seus pés dormia, num berço simples, uma criança. Dona Amélia
observava lamuriosa aquele sono maravilhoso. Eu ainda era um garoto, mas pude
compreender o seu pranto. Dos seus 14 partos não sobreviveu um só filho. 11
foram abortos e três viveram apenas alguns meses, embora um menino tenha vivido
até um ano de idade. Do alto de suas ventanas, ela saturava-se do agro fel das
recordações que lhe afogavam o coração, deixando em seus lábios sopros de
frases cansadas e angustiosas. Ela arrimava-se inconformada, ao dizer que o
destino de toda mulher era acalentar uma criança no seio”, concluiu Luís
Gonzaga. Sentiria sempre o vazio da maternidade que não preencheria.
Agora a luz do sol, que antes a tornava prazenteira, passou a
impacientá-la; tornou-se triste, e achava insuportável aquela alegria do céu
que vinha importuná-la. Após a morte do seu marido, nasce uma viúva
excessivamente inflexível, condenada a carregar o peso esmagador da solidão.
Ela sentiu o golpe de tamanho infortúnio; e foi este que despedaçou as suas
forças em um grito de dor, atirando-a fulminada sobre os cristais e porcelanas
finas do seu palácio solitário.
Dona Amélia decidiu se submeter a uma infindável reclusão.
Através das persianas, uma ínfima réstia do firmamento incidia sobre o
assoalho. No relógio, as horas decorriam a passos vagarosos, como se estivessem
se recusando a prosseguir. A sala estava envolvida em uma escuridão profunda,
tal qual a nova vestimenta da Viúva Machado. Um véu de eterno luto alongava-se
sobre o seu corpo.
Aquela recatada senhora, que tinha por hábito admirar a linha
de um horizonte indecifrável, parecia ter aceitado como uma espécie de resignação
o castigo que lhe dava a providência. Renunciou aos salões de futilidades, e
nas raras oportunidades que trespassava o portal do seu exílio era sempre com o
vestido preto, que devia lembrá-la a todo o momento as fatalidades que
maculavam sua sorte. Seria sempre estéril, sozinha, detratada pelos
maledicentes. Seu coração não alimentaria outra vida, sua alma não se
prolongaria em outra. Mulher sem marido e sem filhos... Elo perdido na cadeia
da imortalidade. Era assim que devia pensar.
Seus lábios ainda não haviam se saciado de todo o cálice de
amargura. Faltava-lhe a derradeira gota, talvez a menos acerba de todas. Os
familiares contam que dona Amélia repousava em seu quarto, quando de repente
sentiram um leve estalo. Imaginaram que poderia ser o sopro de uma ligeira brisa
fluvial, ou um simples redemoinho de ar dessas noites de primavera. Quem sabe
teria sido ela mesma a levantar-se de sua velha poltrona, com seu andar
comedido, em direção à janela, a fim de apreciar aquela bela paisagem do
horizonte que parecia ser dela. Abriram a porta, e ela encontrava-se prostrada
em sua cama, com os olhos fixos para o teto de vidro, de onde poderia ver a última
porção de estrelas. Em seguida, na alcova que era negra como seu destino,
embora ninguém tivesse percebido a princípio, ela sorria.
Nos
dias atuais, mesmo depois de tanto tempo de seu falecimento, a Viúva Machado
ainda é lembrada como uma deplorável criatura que comia fígado de crianças e lhes
bebia o sangue. A família, representada na figura de Humberto Micucci, filho
adotivo de dona Amélia, se confessa irritado com as especulações em torno do
nome de sua mãe, e diz que os boatos foram originados pela inveja que as
pessoas sentiam da situação financeira privilegiada e posição de destaque das
quais ela desfrutava naquela época. Segundo ele, sua mãe deveria ser rememorada
como a imagem da mulher afável, devotada à família e à natureza. “Como dizia Machado
de Assis: a inveja não é senão uma admiração que luta. E minha mãe foi derrotada
por essa que é a pior das características humanas. Ela era uma seda, uma flor
de jardim, assim como aquelas que embelezarão para sempre o seu palacete”, finaliza.
Em 1978, aos
98 anos, dona Amélia Duarte Machado foi encontrada morta no leito do seu
quarto. Estava encerrada em si mesma.
Otávio Camilo
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