domingo, 4 de novembro de 2012

O fechamento do Diário de Natal e a morte do jornalismo impresso


POR: Otávio Camilo


O que há entre a vida e a morte? Somente uma curta ponte, da qual todos os seres atravessarão. O despotismo mais longo e cruel da nossa frívola existência. Sofremos pelo seu desígnio a partir da concepção do próprio mundo. Um flagelo invisível; a força mais arbitrária do destino. O seu bater de asas não acomete exclusivamente os vivos, mas também a tudo o que nos cerca. A mais certa das evidências; a maior aflição entre as obviedades. De olhos melancólicos escorriam lágrimas de saudade e frustração...

O belo brilho matutino branqueava o céu, tingira depois o cimo dos montes, derramou-se enfim pela encosta abaixo, até aparecer o sol, estrela portentosa de todos os homens que caminham por essa terra. Alguns deles fitavam o mar, - eram nove horas da manhã. Quem os vissem, presumiriam que eles admiravam o pedaço de água tranquila; mas, na verdade, afirmo que refletiam sobre algo bem diferente: confrontavam o passado com o presente. Aqueles olhos secos e incrédulos traziam esperanças que supunham impossíveis e recordações que já pareciam obscurecidas pela força consoladora do tempo. Que era, há 1 mês? Um breve período havia se consumido desde o acontecido e o som vago e misterioso do problema nada mais era do que a lástima de alguns nostálgicos. Como era profundo o pessimismo de suas almas. A conformidade filosófica era o que restava.
               Naquele mesmo dia, a alvorada me sorriu através do canto dos pássaros, na luz gritando sobre as coisas que cobria. Era apenas mais um amanhecer de outubro. No entanto, acordei sobressaltado por uma sensação esquisita: a alegria parecia estar se pondo junto da aurora. A tristeza de uma imperiosa interrogação estampou o meu rosto. O dia era infeliz como uma lamúria e pairava o silêncio sepulcral de uma despedida. O motivo de tal sentimento era confuso, não me surpreendi, porém, quando me foi revelado. Lamentei pelo último suspiro de uma alma expirante. E como poderia deplorar? Acabo de me tornar cúmplice do mais vil dos crimes. Frio, repisado, minucioso... O mais violento dos homicídios. Assumiremos, eu e alguns insensatos, a autoria dessa enorme transgressão.
Pranteamos defronte ao cadáver, mesmo com as nossas mãos ainda manchadas pelo seu sangue. Nefastos, vergonhosos, perversos... Que essas sejam as alcunhas. Fomos capazes de acabar com uma fonte inesgotável de prazer e transformamos em tortuoso o caminho florido do conhecimento. Assassinamos, por intermédio da nossa tolice, um dos pilares da comunicação da cidade do sol. Com essa atitude, possivelmente tenhamos iniciado um processo que culminará, com o perdão da redundância, no óbito definitivo do jornalismo impresso dessa aprazível província. Falemos de um moribundo...
O Diário de Natal foi o primeiro dos grandes jornais do estado que finalizou sua atividade na versão impressa, passando a ser unicamente em formato eletrônico. Um sinal dos tempos ou apenas um caso isolado? Eis o começo do fim de uma tradição que superou as barreiras da modernidade. A imortalidade parecia ser o seu lote, seu mérito, ou qualquer nome que haja. Egípcios, babilônicos, gregos e até os insanos da Roma antiga já contemplavam papiros e pergaminhos. A leitura nos oferece a capacidade indelével de enxergar além do que apresenta o horizonte. Inspirados pelo seu propósito nos tornamos alados e voamos sobre as nuvens brancas da incompreensão humana. Pupilas ávidas, instantes intensos, pensamentos absorvidos... Um mero folhear de páginas era como saborear o manjar que alimenta o espírito. Linhas, versos, livros, o seco e amassado jornal... Quando o sublime ato de ler deixou de nos fascinar? O vilão fez-se digital...
             Não viveste o suficiente para ver a sua criação fadada ao fracasso, Gutenberg. Mas não vamos reviver o passado; tentemos conjecturar as possibilidades que levaram ao infortúnio, não apenas do Diário de Natal, mas de todo o jornalismo impresso brasileiro. A internet tornou-se um inimigo voraz dos periódicos; uma concorrência que beira a deslealdade. Essa ferramenta provocou uma revolução na sociedade contemporânea, por meio de suas redes de interação, e pelo fato de disponibilizar a informação de maneira democrática. As notícias são divulgadas instantaneamente e uma verdadeira avalanche de conteúdo é oferecida aos internautas. A comunicação morosa e fragmentada jamais competirá de modo equilibrado com a sedução exercida por uma tela de computador. Estamos diante do futuro do Jornalismo. 
Deslumbrados ficávamos ao descer a oficina de um jornal e poder assistir de perto a sua produção. As máquinas colossais, o cheiro do chumbo derretido e a simplicidade de escutar o estalar contínuo das pequenas linhas do tipo sendo compostas. Tudo isso se perdeu envolto a saudosas decepções, e por fim, caíram no cavo abismo que separa a verdade do devaneio. Infelizmente o jornal da atualidade privou-se de uma prática que o diferenciava em relação aos outros veículos: a reportagem aprofundada. Análise, opinião, posicionamento... As mais básicas das suas determinações foram abdicadas. A contextualização e a densidade deram espaço para um método mais sucinto e superficial de evidenciar os fatos. Sendo assim, o jornalismo impresso se adequou ao modelo informativo das demais mídias, o que serviria para renegá-lo a um patamar de inferioridade perante o público. Por que tornar a morte mais dolorosa pela certeza?
Como pode se converter em penosa a poesia. Obviamente que a morte nesse caso é uma mera metáfora para entristecer ainda mais uma realidade. Um artifício utilizado por um jornalista consternado, assim como aqueles desafortunados que receberam o bilhete azul da humilhação e puseram-se a contemplar o astro-rei. Contudo, a estrela máxima que rege o firmamento não saberia escarnecer sobre o desânimo dessas pessoas. Somos apenas poetas saudosos do inanimado. Estaria traindo o meu preâmbulo de confissão e culpa, se por acaso acreditasse na possibilidade de um avanço tecnológico ou uma abordagem pouco inteligente serem os reais motivos do encerramento do Diário de Natal e do futuro nebuloso que se configura para todo o jornalismo impresso do país. Prefiro confiar na tese de que a maioria do nosso povo não gosta de ler, seja livro, revista ou jornal. A aspereza dos números e dos dados estatísticos comprova a calamidade de tal avaliação. O epitáfio...
                Essa é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não cede olhos para chorar. E quem haveria de lamentar? O perecimento do Diário de Natal, figurado ou não, pode ser compreendido como uma constatação lógica. Um sintoma claro dos novos valores e virtudes que são seguidos pelos indivíduos. O que faremos então destes jornais, com suas velhas notícias, fotografias em preto e branco e opiniões sem importância? Rasgaremos essas folhas secas e amolgadas sobre os longos relatos da trivialidade. O seu recado de loucura perderá o significado através da perspicácia do tempo. Todos estarão de acordo que os jornais só servirão para fazer embrulhos. E quanto a nós? Continuaremos a lançar as sementes nesse solo inculto, de onde brotarão árvores compostas de folhas agrestes e, finalmente, habitaremos em uma floresta ignara da qual chamaremos de sociedade. Náufragos da existência, herdeiros inopinados e julgados culpados pelo tribunal silencioso da nossa própria consciência. Seguirei traçando linhas e versos para o esquecimento.

                               Diário de Natal
  18 – 9 – 1939      -     2 –10-2012
Aqui jaz um jornal que morreu pela indiferença

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