Sorriam e comemorem, torcedores rubro-negros! Pois hoje é Natal. O 3 de março representa o
nascimento da referência máxima do mais popular dos clubes brasileiros. Do
simpático bairro de Quintino surgiria o messias de uma pátria chamada Flamengo.
Parabéns, galinho.
Eis a única
verdade incontestável da mais irracional arte criada pelo intelecto do homem: o
futebol e a literatura são um só. Há algo de abstrato e profundo envolvendo
essas duas paixões, nesse encontro entre a letra e a bola. Ao adentrar nos
gramados ou no simples ato de abrir um livro rompemos as barreiras de um
universo encerrado em si mesmo, um mundo que se comunica com o nosso cotidiano
de maneira oblíqua e intensa. No estádio e no romance estão dispostas todas as sensações
humanas: desejo, medo, moral e regras. No último capítulo da narrativa e no derradeiro
apito do árbitro temos uma revelação, que pode ser tão calamitosa quanto à
derrota do nosso time do coração. Em ambos, a injustiça e o triunfo do mal
tornam-se compreensíveis, a consagração e a derrocada são absorvidas por uma
ordem elevada: o amor dos aficionados. Herói para uns, vilão para outros, mas
eternamente lembrado nos livros da história. O ídolo e os versos.
Le Rouge
et le Noir, traduzindo para o bom português obteremos o vermelho e o negro. Cores
antagônicas, e que juntas representam a paixão e a tragédia; o rubro da alegria
e o negro da tenebrosa saudade. O escritor francês Stendhal, autor dessas
contraditórias linhas romanescas, descreve a ascensão de um indivíduo ao
sucesso, apesar de sua ordinária origem, através de uma combinação de talento, obstinação
agressiva e percalços. Foi traído e glorificado pelo seu próprio engenho. A plateia
o atraía, o aplauso lhe namorava e a sua saudação final encheu aquele dia de
uma música sorumbática. Recordamo-nos de uma centelha do passado que estava
debaixo da cinza...
O sol dardejava raios de fogo no céu límpido da cidade
maravilhosa; porém milhares de pessoas rejeitavam o seu esplendor; as suas
mentes concentravam-se em ouvir o som agudo de uma despedida. O ano era 1990,
uma bagatela de vinte e três anos que se vão, levando consigo as ilusões de milhões
de apaixonados, e deixando-lhes em troca, meus caros leitores, uma triste, crua
e desconsoladora lembrança. O palco era o mais propício para o momento;
majestoso tal qual o sentimento estampado naquelas faces. O bardo jubiloso de
uma torcida converteu-se numa adoração silenciosa e resignada. Os olhos que
refletiam a exacerbação do espírito fizeram-se murchos, e os lenços brancos
sacudiam o ar em meio ao pranto. Almas infames, chamem a todos nós de
saudosistas.
Todas as
vidas de misérias, lutas e atribulações eram unidas e dissipadas mediante o
canto mavioso de uma nação em duas cores. Todas as adversidades de um imenso povaréu
se extinguiam, quando suas pupilas testemunhavam as peripécias daquele herói
que vestia os seus sentimentos. E quem era esse nobre paladino, que exprimia-se
com a graça de um rei benévolo? Não havia vozes que pudessem acalmar as dores
que andavam nos corações do seu povo; e a melancolia, essa voraz inimiga dos
prazeres humanos, veio agitar as almas e toldar o céu brilhante dos rostos que
sorriam. Aquele majestoso santuário das verdadeiras felicidades de uma copiosa
plebe despedia-se daquele que tanto o glorificou. Zico e Maracanã, uma história
de amor que o tempo não apagou.
A pelota
corre solitária com o seu destino mal traçado, infeliz e injuriada, até que
encontra pelo caminho alguém que lhe trate com carinho. Faceira e obediente ela
cessa sua trajetória aos pés prodigiosos do soberano daquele campo. E seguem em
frente, o craque e a bola; passos firmes, dribla um zagueiro, o outro cai embasbacado;
ludibria o pobre goleiro que prostra-se humilhado. Estufa a rede sem trabalho. Era
só mais um para adornar a sua bela coleção. Aquele grande ídolo, a quem todos
chamavam afetuosamente de galinho, era capaz de proporcionar infindáveis momentos
de ilusão, que nos dava a maior felicidade da terra. A epopeia confundiu-se com
a realidade...
O Zico não
era diferente de outros jogadores que vieram do nada e atingiram a glória, mas
havia nele algo de uma força elementar: criava como a natureza. Em seu vasto repertório
também existia um componente trágico de raiz genuinamente literária. Quando ele
perdeu o pênalti contra a França, na copa de 86, ou quando sucumbiu juntamente com
a mais estrelada das nossas gerações na fatalidade do Sarrià, estava cumprindo
a sina de todo personagem fantasioso: no auge da fama, pôs tudo a perder. Ofereceu-se
em sacrifício para ensinamento dos homens, punindo a soberba do “país do
futebol”. Nesses fatídicos instantes, Zico estava inconscientemente se
igualando a Julien Sorel, protagonista da obra citada inicialmente, cometendo
um crime que o levaria dos palcos aristocráticos aos lúgubres cadafalsos da
nossa vil opinião.
O galinho foi
o comandante virtuoso de um time inesquecível que marcou a década de 80. Postava-se
como um magnificente soberano, assim como o rei lendário que dignificou o seu
nome. Com altivez e talento perpetuou o seu reino. Foi coroado e trajado com a
túnica sagrada da mais célebre das agremiações. Transformou o Flamengo numa
távola redonda e com seus cavaleiros conquistou o mundo inteiro. Vida longa ao
rei Arthur Antunes Coimbra!
Chora em abundância,
querido Maracanã, pois tuas belas tardes de domingo não mais contemplarão o seu
maior artilheiro. Deploremos juntos, lamuriosos das arquibancadas, seja você rubro-negro
ou qualquer apreciador de uma obra prima. Bastará uma lágrima de ternura dos milhões
de teus súditos, para imortalizarmos a memória e o delicioso eflúvio de recordações
de um supercraque. A aterradora fagulha do passado apagou-se de todo.
Cantemos
ao teu filho ilustre, saudoso Mário Filho, evocando em irmandade as fintas mais
vistosas, os venturosos passes, as perfeitas cobranças de falta e os gols mais notáveis
desse régio do teu virente templo, que nessa data completa 60 anos de vida e de
multidões. O futebol e a literatura são um só. Tal foi o início, tal foi o
desfecho.
Otávio Camilo
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