domingo, 3 de março de 2013

O ídolo e os versos


                Sorriam e comemorem, torcedores rubro-negros! Pois hoje é Natal. O 3 de março representa o nascimento da referência máxima do mais popular dos clubes brasileiros. Do simpático bairro de Quintino surgiria o messias de uma pátria chamada Flamengo. Parabéns, galinho.   
                Eis a única verdade incontestável da mais irracional arte criada pelo intelecto do homem: o futebol e a literatura são um só. Há algo de abstrato e profundo envolvendo essas duas paixões, nesse encontro entre a letra e a bola. Ao adentrar nos gramados ou no simples ato de abrir um livro rompemos as barreiras de um universo encerrado em si mesmo, um mundo que se comunica com o nosso cotidiano de maneira oblíqua e intensa. No estádio e no romance estão dispostas todas as sensações humanas: desejo, medo, moral e regras. No último capítulo da narrativa e no derradeiro apito do árbitro temos uma revelação, que pode ser tão calamitosa quanto à derrota do nosso time do coração. Em ambos, a injustiça e o triunfo do mal tornam-se compreensíveis, a consagração e a derrocada são absorvidas por uma ordem elevada: o amor dos aficionados. Herói para uns, vilão para outros, mas eternamente lembrado nos livros da história. O ídolo e os versos.
                Le Rouge et le Noir, traduzindo para o bom português obteremos o vermelho e o negro. Cores antagônicas, e que juntas representam a paixão e a tragédia; o rubro da alegria e o negro da tenebrosa saudade. O escritor francês Stendhal, autor dessas contraditórias linhas romanescas, descreve a ascensão de um indivíduo ao sucesso, apesar de sua ordinária origem, através de uma combinação de talento, obstinação agressiva e percalços. Foi traído e glorificado pelo seu próprio engenho. A plateia o atraía, o aplauso lhe namorava e a sua saudação final encheu aquele dia de uma música sorumbática. Recordamo-nos de uma centelha do passado que estava debaixo da cinza...
O sol dardejava raios de fogo no céu límpido da cidade maravilhosa; porém milhares de pessoas rejeitavam o seu esplendor; as suas mentes concentravam-se em ouvir o som agudo de uma despedida. O ano era 1990, uma bagatela de vinte e três anos que se vão, levando consigo as ilusões de milhões de apaixonados, e deixando-lhes em troca, meus caros leitores, uma triste, crua e desconsoladora lembrança. O palco era o mais propício para o momento; majestoso tal qual o sentimento estampado naquelas faces. O bardo jubiloso de uma torcida converteu-se numa adoração silenciosa e resignada. Os olhos que refletiam a exacerbação do espírito fizeram-se murchos, e os lenços brancos sacudiam o ar em meio ao pranto. Almas infames, chamem a todos nós de saudosistas.
               Todas as vidas de misérias, lutas e atribulações eram unidas e dissipadas mediante o canto mavioso de uma nação em duas cores. Todas as adversidades de um imenso povaréu se extinguiam, quando suas pupilas testemunhavam as peripécias daquele herói que vestia os seus sentimentos. E quem era esse nobre paladino, que exprimia-se com a graça de um rei benévolo? Não havia vozes que pudessem acalmar as dores que andavam nos corações do seu povo; e a melancolia, essa voraz inimiga dos prazeres humanos, veio agitar as almas e toldar o céu brilhante dos rostos que sorriam. Aquele majestoso santuário das verdadeiras felicidades de uma copiosa plebe despedia-se daquele que tanto o glorificou. Zico e Maracanã, uma história de amor que o tempo não apagou.  
               A pelota corre solitária com o seu destino mal traçado, infeliz e injuriada, até que encontra pelo caminho alguém que lhe trate com carinho. Faceira e obediente ela cessa sua trajetória aos pés prodigiosos do soberano daquele campo. E seguem em frente, o craque e a bola; passos firmes, dribla um zagueiro, o outro cai embasbacado; ludibria o pobre goleiro que prostra-se humilhado. Estufa a rede sem trabalho. Era só mais um para adornar a sua bela coleção. Aquele grande ídolo, a quem todos chamavam afetuosamente de galinho, era capaz de proporcionar infindáveis momentos de ilusão, que nos dava a maior felicidade da terra. A epopeia confundiu-se com a realidade...
               O Zico não era diferente de outros jogadores que vieram do nada e atingiram a glória, mas havia nele algo de uma força elementar: criava como a natureza. Em seu vasto repertório também existia um componente trágico de raiz genuinamente literária. Quando ele perdeu o pênalti contra a França, na copa de 86, ou quando sucumbiu juntamente com a mais estrelada das nossas gerações na fatalidade do Sarrià, estava cumprindo a sina de todo personagem fantasioso: no auge da fama, pôs tudo a perder. Ofereceu-se em sacrifício para ensinamento dos homens, punindo a soberba do “país do futebol”. Nesses fatídicos instantes, Zico estava inconscientemente se igualando a Julien Sorel, protagonista da obra citada inicialmente, cometendo um crime que o levaria dos palcos aristocráticos aos lúgubres cadafalsos da nossa vil opinião.  
               O galinho foi o comandante virtuoso de um time inesquecível que marcou a década de 80. Postava-se como um magnificente soberano, assim como o rei lendário que dignificou o seu nome. Com altivez e talento perpetuou o seu reino. Foi coroado e trajado com a túnica sagrada da mais célebre das agremiações. Transformou o Flamengo numa távola redonda e com seus cavaleiros conquistou o mundo inteiro. Vida longa ao rei Arthur Antunes Coimbra!
               Chora em abundância, querido Maracanã, pois tuas belas tardes de domingo não mais contemplarão o seu maior artilheiro. Deploremos juntos, lamuriosos das arquibancadas, seja você rubro-negro ou qualquer apreciador de uma obra prima. Bastará uma lágrima de ternura dos milhões de teus súditos, para imortalizarmos a memória e o delicioso eflúvio de recordações de um supercraque. A aterradora fagulha do passado apagou-se de todo.
               Cantemos ao teu filho ilustre, saudoso Mário Filho, evocando em irmandade as fintas mais vistosas, os venturosos passes, as perfeitas cobranças de falta e os gols mais notáveis desse régio do teu virente templo, que nessa data completa 60 anos de vida e de multidões. O futebol e a literatura são um só. Tal foi o início, tal foi o desfecho.

Otávio Camilo

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