domingo, 31 de março de 2013

O viajante onírico e a grande fortaleza


                Os museus e suas lembranças; nasceram junto da própria humanidade e com o nosso indelével costume da preservação. Em sua essência, guardam fatos esquecidos, estradas percorridas e tudo aquilo que deveria ter sido. As palavras espalham-se pelo chão, as memórias convertem-se em fantasias por entre seus quadros e telas. Na quietude do seu silêncio, contemplamos razoes inextinguíveis, objetos preciosos ou simplesmente afetivos. Um passeio nostálgico pela história que se perdeu aos nossos sentidos. Espaço onde impera a melancolia, e que nos proporciona uma viagem por um mundo que se foi. Embarcarei nessa jornada...
   Eis-nos chegados aos confins do tempo, ao caminho da formosa plaga, à imensidão outrora maculada. Prostrado em meus devaneios, me vi como um andarilho errante, vagando sobre a brandura de alva areia. Era por um desses fins de tarde em que o manto azul do firmamento é pálido e nostálgico. De lá, surpreendi-me com o rasante vôo de uma branca gaivota, que ressoava um tétrico canto e trazia em seu bico um ramo de cipreste. Ela atravessava o espaço como ligeira folha verde levada pela brisa comedida. O símbolo dos senhores das matas cortava o vento. Eu era apenas um contemplador casual e efêmero de um pedaço oculto de reino. Progredi... 
Nas bandas do ocidente, o sol já havia se atufado nos mares como um brigue em chamas. As aves emudeceram, as plantas perderam o viço. Toda a natureza cessou diante daquele vasto incêndio de crepúsculo, de onde brotou o diamante e a obra prima esculpida em pedra e sangue, as duas mais brilhantes expansões do poder criador. O astro rei escondia-se pela colossal indiferença das águas, tocando com sua luz de ouro os topos abaulados das dunas e a amurada dos navios, que em airosa terra aportavam. Recostados à borda estavam nômades espíritos, que de pátrias longínquas vinham colonizar. Seus rijos braços içavam as vergas, ostentavam armas, e dos seus rúbidos olhos refletiam o grito tenebroso da morte. Da superfície eterna do oceano desembarcavam soldados e infantes.

O sonho me incidia como uma visão remota, em um ponto obscuro do horizonte, envolto em brumas sorumbáticas e estribilhos de canhões. Naquele céu pardo de uma lúgubre noite surgiram três estrelas reais que avivaram o azul e indicaram-me o local onde sua irmã encontrava-se decaída. Crepita no ar, ou farfalha nas palmas dos coqueiros, o clamor bélico das atalaias. Com as pupilas lânguidas, continuei a seguir aquele clarão indefinido que rasgava as trevas.
Longe, ainda mais longe... Os fantásticos cimos revelaram-me a magnificência e angustiosas verdades enterradas sob o concreto. Meus olhos, que fitavam as sombras fugitivas, agora admiravam um baluarte de alvenaria suspenso entre o mar e o empíreo por uma ponta de rochedo. Uma fortaleza que unia as forças portentosas da natureza, e reverberava como fulgurante esmeralda aos louros raios das ondas. As margens ali eram vermelhas e tempestuosas, perpassando ventania de aflição pela serena capela em arco. De dentro das irregulares muralhas ouve-se o brado cruciante da batalha.
O virente solo daquele lugar estava impregnado pelas auras das nossas virtudes primitivas, que ecoavam ao som beligerante. Andejando pelos pavimentos, presente, passado e futuro pareciam desvanecer, e minha alma abismava-se aniquilada no meio das vozes lamuriosas dos eternos vultos dos heróis que sucumbiram encarcerados. Aquele templo magnífico, que elevava-se altaneiro sobre o grande rio, fora inundado pelos esplendores da beleza tal qual um castelo, mas carregado pelos terríveis odores do funéreo chão de uma masmorra. Os filhos de diversos povos preparavam-se para o combate. A guerra entre bárbaros.
               A disparada flecha rompeu o espaço e o rouco som da inúbia repercutiu pela praia. Os invasores do velho mundo estremeceram ao reconhecerem o estrídulo de cólera do valente Poti, senhor do Potengi, berço daquele templo. Sua selvagem fronte via os guerreiros brancos entre nuvens escarlates. O cavo búzio dos tapuias estruge pelos pavimentos. Os indígenas recebem o ímpeto dos inimigos com suas lanças e nas pontas eriçadas de suas flechas, que eles despedem dos arcos aos molhos. Logo após soa a pocema, restringe-se a área e a luta trava-se face a face. Prosseguiu o combate que culminaria na morte dos bravos. Quando o tacape e a infantaria se encontram a peleja estremece, como um só combatente, até as entranhas. Homens em desespero rojavam pelo chão. Os mortos saltavam da feral fortaleza.  
Tanto foi o sangue, que o majestoso rio dos camarões desistiu do seu ritmo; suas beiradas pranteavam gotas rubras. O descomunal tritão delirava, ao rejeitar vermelhas espumas. Tanto foi o sangue, que até mesmo a lua levantou-se indecorosa, ao vagar como sonâmbula por defuntas auréolas. Nessa lancinante hora, nem os rostos fraternos se conheciam, lado a lado. Os corações libertaram-se dos densos uniformes, as almas formariam colunas, mas não ergueriam uma nova estrela. Os torvos sobreviventes abandonaram o forte; com pouco, retumbava em partida um berro altivo de além-mar e os vultos desapareceram na escuridão do ocaso. Era o fim da guerra, assim como do meu delírio. Minha imaginação se convertera em ruínas.

Museu Câmara Cascudo, Museu de Arte Sacra, Museu Café Filho, Museu da Imprensa Eloy de Sousa e Palácio da Cultura. Toda a história do Rio Grande do Norte abandonada pelo Poder Público.

Otávio Camilo

Um comentário:

  1. Gente ele escreve muito......PERFEITO Otávio Camilo, Parabénssss

    ResponderExcluir