As
feiras existem no Brasil desde o período colonial. Apesar da modernidade e dos
transtornos causados nas grandes cidades, elas sobrevivem e simplesmente se
recusam a desaparecer. Em muitos lugares do país elas são a principal e, às
vezes, o único ponto de comércio para a população. Em muitos casos elas
funcionam como centros de entretenimento e cultura. É exatamente essa a proposta
da Feira do Carrasco, uma das mais tradicionais feiras da cidade de Natal,
capital do Rio Grande do Norte.
Situada no bairro das Quintas, entre as
avenidas Bernardo Vieira e a Rua Baraúna, no Alecrim, a feira traz em seu nome
uma alusão ao caminho percorrido para chegar até ela, feito de pedras
pontiagudas. A feira foi criada no ano de 1967, pela ação dos próprios habitantes
da localidade, que viram nesse tipo de comércio um modo de melhorar as condições
da localidade em que vivem.
Nesse texto, permitirei que o véu dos
devaneios oculte o mundo real aos meus sentidos, para tentar encontrar a sombra de um menino que se
perdera há muito tempo.
Hoje é quarta, dia de
feira. O sol ainda não havia se afogado no seio da noite, e eu, saudoso
jornalista, contemplava a limpidez do céu, que escondia-se por entre as nuvens,
e a lua, que derramava no espaço sua luz
doce e acetinada. De repente, a felicidade me sorriu com todas as suas cores
brilhantes, envolvendo-me em um tépido e delicioso eflúvio de recordações. As
primeiras chuvas já tinham lavado o horizonte desse vapor fumacento que nos
abafa. A tarde de maio estava formosa e jubilosa de lembranças, como um bando
de passarinhos, que depois de uma longa temporada longe de sua terra natal,
retornam alegres e cantam pelos ramos floridos de um vergel. Voavam
prazenteiros sob os raios dourados do crepúsculo. Enfim, entrei de cheio na
avenida de trilha pedregosa, que me levaria à admiração do pedaço oculto de um
mundo colorido. O meu pensamento lançou-se a galope a um lugar carregado de
cheiros, que me pareciam de um jardim que era a terra inteira. Vede o grande
carrasco...
Talvez
toda a sabedoria, verdade e sinceridade da nossa existência estejam comprimidas
naquele afável momento em que transpomos os umbrais de uma feira livre. Um
enorme teatro, onde a dor e o sofrimento não fazem parte de suas cenas. Um lugar
cheio de cores, sons, movimentos, ricos personagens, cada um com sua história
na ponta da língua. Realidades distintas confraternizam e abraçam-se ao meu
redor. Cenários estonteantes, para serem vistos por todos os seres que por
ali passam.
Eu
havia mergulhado em um mar tempestuoso de imensidões variáveis de vida e de
emoções suaves da primeira quadra da minha vida; a época em que eu era apenas
um garoto traquina, pensando que era o dono do mundo que via e daquela feira
que o astro rei cingia de um brilho incrível. Acabei perdendo a sombra
impalpável da minha infância, assim como as frases corriqueiras que se
dispersavam através do vento: “frutas e verduras fresquinhas, quem vai
querer?”. “Mulher bonita não paga, mas também não leva!”. A vivacidade dos
feirantes e o carisma exalado daquelas barracas de legumes representa um
mistério maior do que o próprio fascínio que esse grande evento cultural pode
causar nas pessoas. Continuava o meu caminho atrás da sombra fugitiva, quando,
de súbito, na imensidão da paisagem, explodiu o arrulhar de palavras de
cortesia, que, pela cadência suave da voz, parecia trechos de poesia.
Os
vendedores proferiam risadas e gritos homéricos, anunciando a qualidade dos
seus produtos e garantindo o diferencial dos seus preços. As pessoas
pechinchavam, examinavam e negociavam... É possível que uma feira seja o único
local onde uma dúzia pode se tornar variável, o que irá depender apenas de um
bom argumento do cliente ou do humor do feirante. Vagueando pelas barracas,
pude perceber que alguns clientes conheciam os vendedores de longa data e às
vezes pareciam mais amigos do que fregueses. Assim acontece com José Paulo de
Oliveira, 48, feirante e piadista nato. Seus causos e lorotas têm uma
simplicidade notória, cujo sentido completo caberia perfeitamente dentro do
caroço do feijão que ele vendia. Seu Zé, como carinhosamente é chamado pelos
colegas, é uma figura que fala com gracejos, multiplicando-se em gestos e
olhares, desfiando um rosário de ditos agudos e anedotas grotescas. Labutando
no ofício há 25 anos, ele exprime o seu orgulho pelas amizades que conquistou
ao longo do tempo. “A feira é sempre uma
diversão, o local onde todos andam. Do político à dona de casa, todos se
encontram aqui”, conta. “Isso gera uma
aproximação, muita gente vem na minha barraca só para conversar”, relata o
contador de piadas, que, no decurso de seu trabalho, colecionou amigos entre um
pedido e outro.
Muitas coisas povoavam minha mente: grandes desejos, nobres ambições, cativantes narrativas, mas as recordações que esse lugar me oferecia era o que me atraía de verdade. Ali eu encontrara ideias e ilusões da minha infância que eu havia perdido há muito tempo. Elas surgiram claramente quando me deparei com um homem de expressão simples, mas que exalava candura e convicção. Era o violeiro José Ramalho da Silva, 65, que carregava seu fiel instrumento musical como se fosse à luz para a sinceridade de olhos que jamais enxergaram o fulgor de uma alvorada. A voz daquele cego cantador emitia uma maviosa melodia, porém transluzia uma nota vibrante de revolta. O seu semblante refletia uma estranha mistura de alegria e desespero. Devido a sua deficiência, a família o abandonou como pedinte na Feira do Carrasco. Semanalmente, ele sentava à porta da minha antiga morada para trocar o seu talento por um prato de comida. O som de sua música parecia ter o acompanhamento de todos os outros sons, com tamanha carga de mistério, desolação e tristeza como eu jamais ouvira. A necessidade e a vocação fizeram-lhe adquirir, aos poucos, o que não trouxera do nascimento nem da fortuna. Ele terminou de cumprimentar-me e se sentou à parte, indistinto e silencioso, na pose de um Buda em meditação. A minha fisionomia oscilava entre o cômico e o trágico.
Tinha
saudade do céu da minha puerilidade. Vários nomes dissipavam-se no azul
daquela vastidão de planeta, quando em minhas fantasias eu me via novamente como
uma criança, descendo rapidamente pela íngreme ladeira da minha rua. Todas as
reminiscências desapareciam com a volta da razão e pelo balanço contínuo da
cadeira de dona Minervina da Silva, 91, uma das fundadoras da feira e a mais antiga
moradora do bairro. Lembro-me claramente da ocasião em que chutei a bola na
janela de sua casa e, ao invés de receber injúrias ou reprimendas, ela me
acariciou com sua harmoniosa arte de captar os outros. Uma revoada de memórias
invadiu a minha alma, no instante em que me sentei ao lado daquela mulher que
seduzia pela viçosa jovialidade que manava dos lábios e pela sua meiguice
radiante. “Eu sou uma das ‘mães’ dessa feira, e
tenho uma barraquinha de pastel há mais de 40 anos aqui. Fico muito satisfeita
em dizer que trabalho como feirante desde os sete anos de idade, época em que
vendia milho verde junto com meus pais. O meu maior prazer é ver um freguês
saindo contente daqui. Isso aqui é minha vida!”. “Eles são muito atenciosos e
engraçados”, diz Camila Gurgel, 15, estudante do ensino médio entre uma
mordida e outra da principal atração da Feira do Carrasco: o pastel de dona
Minervina.
O
sol precipitava-se na profundeza escura do ocaso, e os feirantes, sem raios e
sem trilhos, desmontavam suas barracas e tabuleiros para irem embora. A
nostalgia, que me devorava, já não era essa tristeza lânguida, que se entorna da alma com certa suavidade como o perfume de uma flor mirrada.
Ela se espairecia nos ares nas asas de um celeste devaneio. Assim como um homem
que cumpre sua jornada por um caminho obscuro, finalmente pude me separar daquela
sombra do passado que me guiava. Despedi-me dela, assim como da Feira do
Carrasco.
Otávio Camilo
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