terça-feira, 21 de maio de 2013

Lembranças e histórias da Feira do Carrasco


                  As feiras existem no Brasil desde o período colonial. Apesar da modernidade e dos transtornos causados nas grandes cidades, elas sobrevivem e simplesmente se recusam a desaparecer. Em muitos lugares do país elas são a principal e, às vezes, o único ponto de comércio para a população. Em muitos casos elas funcionam como centros de entretenimento e cultura. É exatamente essa a proposta da Feira do Carrasco, uma das mais tradicionais feiras da cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte.
                 Situada no bairro das Quintas, entre as avenidas Bernardo Vieira e a Rua Baraúna, no Alecrim, a feira traz em seu nome uma alusão ao caminho percorrido para chegar até ela, feito de pedras pontiagudas. A feira foi criada no ano de 1967, pela ação dos próprios habitantes da localidade, que viram nesse tipo de comércio um modo de melhorar as condições da localidade em que vivem.

Nesse texto, permitirei que o véu dos devaneios oculte o mundo real aos meus sentidos, para  tentar encontrar a sombra de um menino que se perdera há muito tempo.

           
                  Hoje é quarta, dia de feira. O sol ainda não havia se afogado no seio da noite, e eu, saudoso jornalista, contemplava a limpidez do céu, que escondia-se por entre as nuvens, e a lua, que derramava no espaço sua luz doce e acetinada. De repente, a felicidade me sorriu com todas as suas cores brilhantes, envolvendo-me em um tépido e delicioso eflúvio de recordações. As primeiras chuvas já tinham lavado o horizonte desse vapor fumacento que nos abafa. A tarde de maio estava formosa e jubilosa de lembranças, como um bando de passarinhos, que depois de uma longa temporada longe de sua terra natal, retornam alegres e cantam pelos ramos floridos de um vergel. Voavam prazenteiros sob os raios dourados do crepúsculo. Enfim, entrei de cheio na avenida de trilha pedregosa, que me levaria à admiração do pedaço oculto de um mundo colorido. O meu pensamento lançou-se a galope a um lugar carregado de cheiros, que me pareciam de um jardim que era a terra inteira. Vede o grande carrasco...
      Talvez toda a sabedoria, verdade e sinceridade da nossa existência estejam comprimidas naquele afável momento em que transpomos os umbrais de uma feira livre. Um enorme teatro, onde a dor e o sofrimento não fazem parte de suas cenas. Um lugar cheio de cores, sons, movimentos, ricos personagens, cada um com sua história na ponta da língua. Realidades distintas confraternizam e abraçam-se ao meu redor. Cenários estonteantes, para serem vistos por todos os seres que por ali passam.
      Eu havia mergulhado em um mar tempestuoso de imensidões variáveis de vida e de emoções suaves da primeira quadra da minha vida; a época em que eu era apenas um garoto traquina, pensando que era o dono do mundo que via e daquela feira que o astro rei cingia de um brilho incrível. Acabei perdendo a sombra impalpável da minha infância, assim como as frases corriqueiras que se dispersavam através do vento: “frutas e verduras fresquinhas, quem vai querer?”. “Mulher bonita não paga, mas também não leva!”. A vivacidade dos feirantes e o carisma exalado daquelas barracas de legumes representa um mistério maior do que o próprio fascínio que esse grande evento cultural pode causar nas pessoas. Continuava o meu caminho atrás da sombra fugitiva, quando, de súbito, na imensidão da paisagem, explodiu o arrulhar de palavras de cortesia, que, pela cadência suave da voz, parecia trechos de poesia.
                
                 Fui surpreendido por uma voz macia como de acalento, daquelas que possuem tanta ternura e delicadeza que são capazes de amolecer até os corações mais insensíveis. “Jovem, quer comprar um dente de alho?”, essa foi a simpática frase de dona Idalina dos Santos, 62, que trabalha na feira há mais de 30 anos. Sua elegância e gentileza não encontravam objeção de ninguém. Toda a gente que circulava por aquela barraca de diversos artigos admirava a afabilidade daquela senhora robusta, conhecida entre seus companheiros por sua generosidade para com os mais humildes. “A gente tenta fazer o bem sem olhar a quem. Não é porque você ajudou hoje que não precisa ajudar amanhã”, ressalta a feirante. Nos despedimos com um efusivo abraço. Continuei minha caminhada.

                 Os vendedores proferiam risadas e gritos homéricos, anunciando a qualidade dos seus produtos e garantindo o diferencial dos seus preços. As pessoas pechinchavam, examinavam e negociavam... É possível que uma feira seja o único local onde uma dúzia pode se tornar variável, o que irá depender apenas de um bom argumento do cliente ou do humor do feirante. Vagueando pelas barracas, pude perceber que alguns clientes conheciam os vendedores de longa data e às vezes pareciam mais amigos do que fregueses. Assim acontece com José Paulo de Oliveira, 48, feirante e piadista nato. Seus causos e lorotas têm uma simplicidade notória, cujo sentido completo caberia perfeitamente dentro do caroço do feijão que ele vendia. Seu Zé, como carinhosamente é chamado pelos colegas, é uma figura que fala com gracejos, multiplicando-se em gestos e olhares, desfiando um rosário de ditos agudos e anedotas grotescas. Labutando no ofício há 25 anos, ele exprime o seu orgulho pelas amizades que conquistou ao longo do tempo. “A feira é sempre uma diversão, o local onde todos andam. Do político à dona de casa, todos se encontram aqui”, conta.Isso gera uma aproximação, muita gente vem na minha barraca só para conversar”, relata o contador de piadas, que, no decurso de seu trabalho, colecionou amigos entre um pedido e outro.
                 
                  Muitas coisas povoavam minha mente: grandes desejos, nobres ambições, cativantes narrativas, mas as recordações que esse lugar me oferecia era o que me atraía de verdade. Ali eu encontrara ideias e ilusões da minha infância que eu havia perdido há muito tempo. Elas surgiram claramente quando me deparei com um homem de expressão simples, mas que exalava candura e convicção. Era o violeiro José Ramalho da Silva, 65, que carregava seu fiel instrumento musical como se fosse à luz para a sinceridade de olhos que jamais enxergaram o fulgor de uma alvorada. A voz daquele cego cantador emitia uma maviosa melodia, porém transluzia uma nota vibrante de revolta. O seu semblante refletia uma estranha mistura de alegria e desespero. Devido a sua deficiência, a família o abandonou como pedinte na Feira do Carrasco. Semanalmente, ele sentava à porta da minha antiga morada para trocar o seu talento por um prato de comida. O som de sua música parecia ter o acompanhamento de todos os outros sons, com tamanha carga de mistério, desolação e tristeza como eu jamais ouvira. A necessidade e a vocação fizeram-lhe adquirir, aos poucos, o que não trouxera do nascimento nem da fortuna. Ele terminou de cumprimentar-me e se sentou à parte, indistinto e silencioso, na pose de um Buda em meditação. A minha fisionomia oscilava entre o cômico e o trágico.
                 Tinha saudade do céu da minha puerilidade. Vários nomes dissipavam-se no azul daquela vastidão de planeta, quando em minhas fantasias eu me via novamente como uma criança, descendo rapidamente pela íngreme ladeira da minha rua. Todas as reminiscências desapareciam com a volta da razão e pelo balanço contínuo da cadeira de dona Minervina da Silva, 91, uma das fundadoras da feira e a mais antiga moradora do bairro. Lembro-me claramente da ocasião em que chutei a bola na janela de sua casa e, ao invés de receber injúrias ou reprimendas, ela me acariciou com sua harmoniosa arte de captar os outros. Uma revoada de memórias invadiu a minha alma, no instante em que me sentei ao lado daquela mulher que seduzia pela viçosa jovialidade que manava dos lábios e pela sua meiguice radiante. “Eu sou uma das ‘mães’ dessa feira, e tenho uma barraquinha de pastel há mais de 40 anos aqui. Fico muito satisfeita em dizer que trabalho como feirante desde os sete anos de idade, época em que vendia milho verde junto com meus pais. O meu maior prazer é ver um freguês saindo contente daqui. Isso aqui é minha vida!”. “Eles são muito atenciosos e engraçados”, diz Camila Gurgel, 15, estudante do ensino médio entre uma mordida e outra da principal atração da Feira do Carrasco: o pastel de dona Minervina.

                O sol precipitava-se na profundeza escura do ocaso, e os feirantes, sem raios e sem trilhos, desmontavam suas barracas e tabuleiros para irem embora. A nostalgia, que me devorava, já não era essa tristeza lânguida, que se entorna da alma com certa suavidade como o perfume de uma flor mirrada. Ela se espairecia nos ares nas asas de um celeste devaneio. Assim como um homem que cumpre sua jornada por um caminho obscuro, finalmente pude me separar daquela sombra do passado que me guiava. Despedi-me dela, assim como da Feira do Carrasco.

Otávio Camilo

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