Uma sociedade que lê, se educa e se informa tende a se
tornar cada vez mais exigente.
A
mente humana é capaz de tudo, porque o universo está dentro dela. O passado que
lacera e um futuro nebuloso marcham conosco por uma estrada larga, cruciante,
sem campos serenos ou ventos jubilosos. O que havia ali, afinal? Revolução ou
mera selvageria? Por que subitamente uma plebe convulsa saiu às ruas para reivindicar? Podemos ver o espetáculo, porém dificilmente poderemos
entender o que ele realmente significa. Possivelmente estejamos diante de uma
nova conflagração social, fato que enobreceria ainda mais a nossa história,
feita de lutas pela igualdade e contra as misérias das injustiças. Gemiam as
vozes do povo...
O
dia findava tranquilo e com uma luminosidade extraordinária. A água brilhava
mansamente; o céu, sem traço de nuvem, era uma imensidão suave de etérea luz. Nos
montes, entre o firmamento e as planícies de um gigante adormecido, a alma
menos audaciosa seria capaz de acometer um exército inimigo, destroçando-o com
a sua intrepidez indignada. Por fim, na sua imperceptível queda de curva, o sol
declinou e, de um buraco reluzente, passou a um vermelho embaciado, sem raios e
sem calor, como se estivesse a ponto de se extinguir, golpeado de morte pelo
toque daquela escuridão que adejava sobre uma massa humana, em sua peregrinação
pelos quatro cantos da formosa terra tupiniquim. O impávido colosso desafiava a eternidade,
postando-se grandioso em sua perpétua lassidão.
Da imensa turba evolava-se
um vago murmúrio de incontáveis sílabas em uníssonos acordes, aqui, ali,
repentinamente salteadas de gritos joviais sofreados. Os indivíduos estadeavam
suas cantilenas naquela tertúlia singular, num séquito popular de
inconformados, na sua infindável oposição às privações e ao menosprezo do
poder. Seguiam a passos ordinários e seguros.
Como em algum quadro de Picasso, espalhavam-se
pelas ruas homens e mulheres de todas as feições, cores e idades, amálgamas de
diversas raças, parecendo que no sobrevir das perigosas ocasiões e na
conformidade das insatisfações lhes predominam, espontâneas, uma lei qualquer
de psicologia coletiva, os instintos guerreiros, a incúria dos bárbaros, a inconsciência
do perigo e o arremesso fatalista por um nobre ideal. O alto valor das passagens dos transportes públicos, descontentamento com a saúde e a educação ou ainda
pela construção de suntuosos elefantes brancos. Que outros significados pode
haver? Muitos, certamente.
O tumulto de ferozes gritos de
guerra parava por momentos, quando defrontavam, de perto, as faces nefastas dos
antagonistas do movimento, até então esquivos, afeitos à barbárie em nome de equivocadas
concepções de ordem e justiça. Os revoltosos, devassando com as vistas as alamedas
tortuosas, nem pensavam nos adversários. Reagindo à canícula e com o desalinho
natural às marchas, prosseguiam envoltos em ditames pacíficos. No entanto, o
curso daquela ordeira chusma é reprimido pelo tinido das armas e pela truculência
de vândalos infiltrados, dissidentes da causa. As bombas e as balas de borracha
desciam incessantes, por trás, pela frente, de soslaio, pelo centro das linhas
da eufórica gente, pontilhando-a de feridos, como uma chuva estridente de
raios. Rápidas sombras caíram pelo chão, deslizando em volta da pandemia de
caos, abarcando a todos em um abraço fraterno. Um ressoar de cantos formidáveis
pendia sobre o solo da mãe gentil.
Fitando
aquele trecho limpo da terra, os protestos impressionavam como alguma coisa
imponente e invencível, tal qual a verdade de um tribunal anônimo e perspicaz,
em que cada membro julgaria aqueles a quem escolheram pra lhes representar. Os falsos
políticos estariam dispostos à opinião aguda do povaréu.
Aquelas pessoas continuavam
a andar a esmo pelas avenidas inundadas de ódio, como se o movimento colérico
da terra lançado no espaço, de repente, se tornasse audível. Através da grande manifestação, mediante os
clamores por direitos inalienáveis, o clangor angustiado da pátria atingia os corações
de todos os cidadãos... Seu passado sangrento, seus anos de chumbo, seu mistério,
sua grandeza, sua realidade espantosa. Todos esses aspectos foram somados ao brado
retumbante de milhares de vozes fervorosas no entoar de um hino glorioso,
ouvido com o mesmo orgulho nas periferias e nas modernas arenas de futebol.
Desse
mundo desencantado, banhado pelo mar da corrupção e regido pelos dogmas de uma
mídia comprometida com os seus próprios interesses, que nos transformam em
objetos facilmente manipuláveis, os deuses se exilaram. Todavia, a razão de
alguns inconformados conservou uma
ideologia que encontrava-se perdida no tempo. E nela acharemos a redenção. O disco
luminoso da lua já era visto no alto, caminhando em silêncio na sua viagem enigmática, assim como aqueles
debelados que erguem seus braços nus, rígidos, acima da cabeça, num incontrolável
desejo de tocar o céu, ou quem sabe numa tentativa de despertar aquele gigante,
que dorme em berço esplêndido seu sono profundo. Acorda, Brasil!
Otávio Camilo
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