“Uma roda de palmas, claras, estrepitantes, inacabáveis, percorreu
pelas fileiras de indivíduos vetustos com o vigor expansivo das aclamações. Os
gritos se confundiam numa mistura de vozes de todos os tons, severamente
abafadas por lágrimas de saudade. Naquele lôbrego dia o sol potiguar deixava
cair sobre as ruas despovoadas uma claridade macia, que não queimava, mas cujo
calor acarinhava como o toque gracioso de uma mulher. Na Ribeira, em um jardim
próximo ao cais do porto, as flores desabrochavam em cores distintas. Margaridas,
cravos, dalilas e violetas. Parecia haver nas lamuriantes alamedas um perfume
muito bom e sutil. As nuvens deslizavam pelo céu, as águas do Potengi
arrimavam-se tranquilas, e os raios dourados do crepúsculo incidiam levemente
sobre aqueles que pranteavam em caminhada. O seu funeral foi um longo e
angustiante préstito pelas avenidas escarpadas da Cidade Alta, e ele foi a cristalização
do seu prestígio, como se ela arrastasse todos aqueles andarilhos para a sua
sepultura. Do seu nobre ataúde, ornado pelas mais belas rosas, eu pude ver que
o vento da idade havia lhe apagado as flamas da ternura, estimando somente uma
vaga reminiscência da alvura deslumbrante da sua tez; do meigo brilho dos
olhos; da suave inflexão do talhe. Aquele caixão levava uma alma superior ao
mundo, mas que tinha o seu mundo selado em si” – Luciano Capistrano,
historiador.
Ruge o vento tétrico do passado. As trevas
pairavam sobre a ocupada província. Encoberta de um leve resquício de
melancolia, a natureza estava prestes a adormecer sob as asas acolhedoras da
noite; a lua, agora inteiramente livre das erradias estrelas que a perseguiam,
marchava taciturna na sua viagem misteriosa. Do céu sombrio, ouvia-se o
estrugir dos beligerantes aviões em partida para a Europa. Pelas íngremes
veredas do berço de Natal avançavam os pelotões de soldados estrangeiros,
atraídos pela doce embriaguez de estranhas músicas que ecoavam pela cálida
escuridão, rompendo o brado de guerra com um ar de erotismo. Um esforço
agonizante de sons, vagarosos, incitados por uma angústia deliciosa de extremo
gozo. Notas graves, uma a uma; pausas de silêncio em que o instrumento sucumbia
diante do luar da formosa plaga, como o movimento fantástico de um relâmpago.
Os sussurros de homens abastados e belicosos perdiam-se entre prelúdios de
tristeza e acordes de piano. Os clarões se enfraqueciam, e a brisa libertina,
despertada por elegantes vultos, resvalava ao longo da arquitetura de um
suntuoso casarão.
O som
das maviosas cantilenas remontava até o firmamento como um pungente lamento,
enchendo de enlevo a Rua Padre Pinto, logradouro assoberbado pelas serenatas e
pela concupiscência. Naquele lugar de fascínio, modestamente enfeitado pelas
taipas e pedras dos sobrados, e pórtico que conduzia às margens tingidas de
chumbo do grande rio de beber, escondia-se, sombreado por árvores que
triunfavam sobre as procelas, um magnificente lupanar, onde habitava uma
senhora cuja beleza e encanto eram o assunto de toda a cidade. Homens vestidos
com alinho e esmero paravam defronte das impudicas paredes de alvenaria,
ladeadas por uma escadaria frontal, que os convidava a penetrarem em uma
espécie de paraíso maometano, dotado de toda a opulência e de lindas houris
para satisfazerem os seus anseios. Gemiam as vozes da noite...
Os
lampejos do tempo entravam pelas venezianas, invadindo um amplo salão de
clássica mobília. As paredes eram estucadas de aparatosos relevos, e o teto
aprofundado em largo medalhão de pintura magistral, onde o céu salpicado de
estrelas despenhava nas frontes maliciosas e petulantes das moças, ostentando
os atrevimentos rosados de suas peles, desatando fitas de gaza pelo ar.
Pelos
cômodos, algumas notáveis venustas corriam, procurando exibir sua nudez. Cada
uma era fitada por olhares extasiados, enquanto aspergiam água no luxo de
brancura dos seus corpos. Suspiravam palavras sedutoras nos ouvidos dos
comensais, cujo significado transcendia qualquer barreira idiomática. No meio
da voluptuosidade do bordel, as outras senhoras, assentadas nas encarnadas
poltronas ou reunidas nas mesas regadas a álcool, distinguiam-se por perfis de
rainhas em todo o esplendor da formosura, que a claridade branda do lugar
vaporizava idealmente. Havia ostentações de joias e vestuários que
impressionava; havia juventude de bocas e olhos arrebatadores; morenas,
incitando magicamente o ânimo do estro sensual sob a carícia de algum
afortunado; loiras, invitando a um enlace de transporte ao empíreo, retiro
etéreo onde vivem os deuses e o amor.
No
banquete, preparado na melhor vivenda, entre as articulações e os grandes
negócios, erigia-se o mais simples e empolgante gênero da oratória: a
eloquência militar. A retórica singular dos soldados, rude e expressiva,
composta de frases breves e vigorosas como as vozes de comando, em que os
prodigiosos vocábulos – pátria, vitória e liberdade, ditas em todas as
entonações da língua saxônica, eram toda a matéria prima do retumbante período
da ocupação americana em Natal. Homens alvos como as dunas que embelezam a
cidade, vestidos com seus trajes modernos, quase despidos.
Do
último degrau da escada via-se uma janela florida, de onde emanava um aroma
fugitivo de Magnólia. As mulheres dançavam com muita graça e lubricidade ao
redor dos ricos comerciantes, dos influentes políticos e egrégios da cultura,
porém nada mais conseguia altear-se um só palmo na perspectiva geral da
multidão. Bêbados de volúpia, em um desespero de luxúria que apoderava-se de
suas mentes, miravam em ávido mutismo, tomados pela curiosidade, a airosa dama
que se aproximava a passos de minueto harmonioso. Vede, mergulhado no deleite,
o pequeno universo de prazer de uma famosa Maria, a quem todos conheciam pela
elogiosa alcunha de ‘boa’.
Na sorumbática noite, um raio de alegria iluminava os
semblantes dos homens. Eles a viam sair faceira, carnuda, sanguínea e fogosa,
um desses exemplares excessivos do sexo que não existia entre as puritanas
damas daquela época, e que conformava-se expressamente em ser esposa do
povaréu. Uma imagem sedutora de branco; seus lábios pintados de carmim, suas
pálpebras tingidas de violeta, com seus fartos cabelos negros colhidos para o
alto com infinita graça e ornados com uma rosa vermelha, a mesma cor de sua
boca e seu coração. Maria Boa exalava
sensualidade e languidez. Bela mulher na prosperidade dos 30 anos de Balzac,
alçando o tronco sobre amplos quadris, fortes como a maternidade que nunca a
felicitou; unhas de rosas, como pétalas incrustadas; olhar inolvidável, negro,
profundo tal qual um abismo, bordado por todas as seduções do desvairo, mas
maculado por uma névoa de abatimento. Os seus olhos possuíam um esquisito
brilho, assim como a escuridão de uma noite infinda.
Aí tem o
leitor, em poucas linhas, o retrato físico da personagem que tornou-se mito, a
representação poética de um ideal suave e gentil. O senhor José de Oliveira,
85, cliente e amigo da cortesã, relembra da voluptuosidade do antigo cabaré: “
há recordações sonoras que ficam perpétuas como um eco de tempos idos.
Lembro-me, às vezes, daqueles olhos de topázio mirando o espelhar da madeira luzidia,
a pureza das teclas de marfim do seu piano. Quando ela tocava, havia na música,
se esta era triste, uma repercussão íntima. Sentia palpitar a dor no teclado
como no espírito. Ela convencia-se de que seu condão estava na voz. Todos os
esplendores de sua sedução, toda a sua gentileza, ela transportava para as
canções, ressoadas em arpejos de angústia”, conta embevecido.
Quem
admirava a beleza de Maria Boa a reconheceria no canto inspirado do Tango, que
era o espelho da sua radiante imagem. Seus lábios somavam num trinado de
aflição, com a mesma garridice com que desabrochavam à sua rubra flor. Sua
risada argentina era a mais cintilante das volatas, e suas palavras espiravam a
fragrância de sua alma, acalentando o desalento dos homens.
A mítica
cortesã era o que poderíamos chamar de perfeito paradoxo. Apesar da pouca
instrução, lia obsessivamente as incontáveis estórias romanescas; as tragédias
machadianas, a singeleza romântica de José de Alencar... Narradas
minuciosamente, derretidas na boca polposa. Em contraste com os seus supostos
instintos, declamava no cabaré em honra da moral triunfante e estigmatizando o
adultério, através de um discurso veemente e indignado. Embora sua casa gozasse
de todo o luxo, ela era avessa a futilidades, permanecendo sempre sóbria,
atributos que dignificavam as damas de uma época aviltada por preconceitos.
Conformava-se ao proclamar que seu destino era o de ser traída como Aurélia,
jamais traidora como Capitu. Desfrutava do seu império de lascívia, endeusada e
querida, prodigalizando martírios, acolhidos sem arrependimentos pelos
clientes, que beijavam as mãos e os pés que os deliciavam. Cultivava a arte de
fazer-se amar; esse que parecia ser o seu dom natural. No entanto, nem sempre
fora assim.
Maria Boa
tocava suas valsas, tristes e metódicas, que iam subindo, conquistando as
acomodações do casarão. As varsovianas tomavam conta de seus dedos, de seus
sentimentos, resgatando-a das possíveis abjeções do seu ofício. Havia naquela
toada uma fadiga obstinada, algo difícil de exprimir, que ninguém conseguia
decifrar. As suas valsas atulhavam de muita mágoa o seu estrepitoso alcouce,
pungindo-lhe com o ressentimento negro e incisivo dos torpores do passado. Um
aluvião de cenas que ela jamais tentou explicar, e que jaziam esquecidas nos
meandros de sua existência, apresentava-se, na conformidade das cordas, nítidas
e transparentes. Trazia consigo uma jubilosa máscara, mas era triste, um drama
velado por um véu, assim como aqueles que estampavam a pequena biblioteca de
sua alcova. Encerrada ali naquele bordel, onde encontrou abrigo para as agonias
pretéritas, pereceria como um fim brusco de mau romance. Ao término da música,
surgiam as recordações...
Foi de trem, em 1942, que Maria Oliveira Barros desembarcou
em solo potiguar. O escritor Luiz Gonzaga, 92, vindo do interior no mesmo ano
da futura dama da noite, evidencia a fisionomia da tímida moça que acabava de chegar
a uma terra desconhecida: “me recordo daquele rosto juvenil, dos seus olhos sem
parceiros no mundo, deslizando no cansaço da desesperança. Enxugava em ar de
seriedade os lábios úmidos; as pálpebras de longas pestanas desciam sobre o
rosto, uma viseira impenetrável de pudor. Convidava à adoração ao colher os
ombros em um manto de candura, refugiando-se na indiferença hierática das
vestais. Depois, uma pontinha de ingênuo sorrir, aventurando-se de relance.
Conversamos por alguns instantes, e pude perceber que ela carregava uma ferida
na alma. Ela me revelou que sua face estava soçobrada de pesar, empalidecida da
debilidade de uma vida que não teria mais sonhos. Afetava-lhe um esboço
comovente de consternação, ao lembrar das austeras e decepcionadas expressões dos
seus pais, no momento em que a expulsaram do seu lar em João Pessoa, sua terra
de origem. A recatada jovem cometera para a sociedade paraibana o mais indigno
dos crimes: a perda da honra e da castidade”, conclui o escritor.
Religião,
amor e literatura, eis os elementos que bastavam para cativar a vida da doce
Maria e torná-la a mais prazenteira do planeta. Eram como três anjos de asas de
ouro, que esvoaçavam de contínuo em torno da sua candidez, arrebatando-lhe ao
paraíso em gozos inefáveis. Três servilismos reclamando apenas um senhor. Era o
tipo mais esmerado de beleza sensual, mas habitado por uma alma virgem e
sensível. Era uma estátua de Vênus animada por um espirito angélico. Ela cresceu
no seio de uma tradicional família, em uma era de privações para as mulheres.
Os pretendentes, todos abonados e de boa estirpe, ofereciam enormes quantias em
dinheiro para o seu pai, numa tentativa de assegurar o monopólio marital sobre
a disputada donzela. Dentro dela balbuciavam desejos, até aí mudos e
adormecidos, com mistérios sendo desvendados nos segredos do seu corpo. Em seus
devaneios pueris, sonhava simplesmente com o casamento dos contos de fadas, com
um príncipe tão belo e bondoso quanto ela, brilhantemente educado e ardente em
paixão. Todavia, ela se teve apenas por protagonista das obras que contemplavam
as misérias dolorosas, aquelas que os poetas chamavam de amor. Fora abandonada
pelo único homem que a arrebatou.
A vida de Maria boa foi acompanhada por uma infindável
ilusão. Embora sua juventude já tivesse perdido o viço, ela não conhecia o
tempo. Ainda que tivesse diante de si uma mocidade de centenas de anos, como as
deusas, isso também em nada significaria. Quando o seu pé sentiu o calor das
brancas areias, em seus sentidos derramou-se um fogo, que ardia como a centelha
sob as cinzas. Aqui ela ergueu o seu templo libidinoso. Assim como aquelas
abnegadas que foram retratadas mediante a sina de um padecer longo e cruel,
resignou-se com o destino que lhe dera a providência. O seu olhar agora já não
transbordava de candura, mas embebido por uma gota de desejo; as narinas
ofegavam, adejavam trêmulas por intervalos, com a vivacidade espasmódica de uma
pomba no cio. Ali estava completa a prostituição da vestal, o himeneu luxurioso
da donzela de outrora. Não poderia mais escolher amores. Assim como a natureza,
seria de todos. Sem remorsos das desordens sentimentais, franqueava-se à
concorrência masculina. Havia lugar para todos à sombra daqueles cabelos
negros.
O rio do tempo passou sobre o lendário cabaré, rachou os
muros, sublimou poeira e fragmentos, destruiu os degraus e as correntes. No ano
de 1986, mesmo antes de se transformar em ruínas, algumas pessoas relatam que o
casarão já havia sido desabitado há décadas, exceto pela paciente poeira e, nos
dias de sol, pelas eternas réstias de luz. Nos dias atuais, diversos homens, andejando
pela rua luminosa, dizem que se postam em imaginação ao sentirem um ligeiro
toque de romantismo; outros afirmam que já observaram, com uma aparência de marmórea
pureza, uma senhora vestida de cetim preto justo sob as formas, entoando agradáveis
melodias em homenagem ao luar. Ela ia sumindo com a chegada da aurora, como se
uma esplêndida beleza se desvanecesse.
Em 1997, aos 77 anos, Maria Oliveira Barros falece devido a problemas cardíacos. O seu
funeral foi um cortejo fúnebre por diversas avenidas, e até hoje é considerado como
um dos maiores da história de Natal.
Otávio Camilo
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