domingo, 24 de fevereiro de 2013

O epicédio de uma tragédia



                 O tempo é o melhor, senão o único consolador das mágoas aterradoras da vida. O seu bálsamo é de uma eficácia e prontidão espantosa. No entanto, apenas 1 mês decorreu-se desde a pior das tragédias e as feridas ainda não foram totalmente cicatrizadas. Maldito seja o destino! Deixaste milhares de corações em pedaços entre as garras da dor e da saudade. Como poderíamos acreditar nesse poder implacável e tirânico, que escarnece dos mais firmes protestos e das juras mais leais? Esqueçamo-nos desse despotismo invisível e imaginemos um idílio encantador. Nesse pequeno prelúdio, me permitirei à ousadia dos dons proféticos, e irei debruçar-me sob a luz das conjecturas. Um devaneio...

                Uma bela manhã surgia nas terras férteis dos pampas, fresca e rociada das gotas de orvalho, desdobrava o seu manto de azul pelo meio da cerração, que se desvanecia aos raios fulgurantes da aurora. Do lado fronteiro, em uma colina longínqua, os raios do sol reverberavam sobre os troncos vetustos, que pareciam colunas de bronze. Toda a natureza permaneceu incólume em meio aos escombros de um templo derruído. Vapores dos montes dispersavam-se nos ares como pétalas de rosas, que diversos jovens desfolhavam às brisas do alvorecer. Em derredor daquela casa, que nos convida e seduz através da doçura de um beijo, tudo também era vida, prazer e entusiasmo. Todos acordaram pulando de alegria, ao receber o primeiro afago do esplêndido céu de Santa Maria.  

A imaginação desmoronou diante da face impiedosa da verdade...

                No dia 27 de janeiro uma circunstância fatal abalou todo o país. Aquele límpido e magnificente manto azul converteu-se em um tétrico cinza, e o aprazível aroma do regozijo se transformou em um imenso cálix de amargura. A alvorada abriu o dia, mas não os olhos de 239 jovens. A luz da manhã dissipou os sonhos jubilosos da madrugada, e impregnou de um agro aroma o coração daqueles que os amavam. Veio então o pranto, as tristes e longas meditações, em que o espírito evoca diversas vezes a lembrança da desgraça. Ela fez-se por entre chamas e faíscas.
               
               Soluça a onda trépida e lacrimosa. Os olhos fulvos e aflitos trazem até mim a exortação da realidade. Sento na cadeira com as pupilas fixas na tv; observo o fogo queimando os verdes anos da juventude, e as lágrimas confrangidas inundavam as faces daquelas pessoas. A angústia e o desespero pintavam as suas feições. O que estava acontecendo ali? Por que o choro abafava os clamores estrangulados? Vozes dolentes berravam num apelo de esperança. As sombras vencidas pela catástrofe e pelo sofrimento arrastavam-se a passos inconscientes pela calçada, e lentamente foi se abatendo sobre eles a escuridão da noite, seca e limpa, como um manto de cinzas que luzissem faúlhas.  
               Adentramos mais uma vez no palco que tão sordidamente fez reverências ao cipreste. O interior da casa tinha a configuração da negligência, sem a fixidez e regularidade das coisas, que pareciam conservar um resto de vida interrompida. Destroços ainda eram vistos pelos cantos; era o abandono do desmazelo e o sossego sepulcral. O dia da pior das calamidades parecia calmo, porém era essa tranquilidade sinistra que assemelha-se ao silêncio que precede as grandes tempestades. A morna correnteza que ventava, passava taciturna como um sopro de morte. Gemiam as vozes da noite...
              Longa foi à agonia; crueldade minuciosa, fria e repisada, que encheu a toda uma população de pesar e estupefação. A Gurizada Fadangueira dava o tom; ao firmamento foi lançado o verdugo em forma de artefato, que queimaria eternamente o esplendor de um novo amanhecer e obscureceria as estrelas de tenras expectativas. Aquele sinistro e ceifador negrume de mais em mais condensava-se sobre suas almas.  A luz se apagou, tal qual o sopro de existência dos garotos que se empilhavam e esmaeciam. A boate Kiss dizimou a multidão como no holocausto, aprisionando suas vítimas numa câmara selada. Não havia portas, janelas, e o ar se extinguia lentamente... O medo cercava de todos os lados. Tudo se convertia em trevas, em desmedidas proporções de pesadelo.

 Os brados estrepitosos foram se calando um após o outro. No chão viam-se os rostos, sobre os quais batia as asas eternas da morte. Os últimos lampejos de almas expirantes se esvaiam junto da negra fumaça que enlutou e corrompeu o céu gaúcho. Aquelas centenas de moças e rapazes que pintaram de sangue as páginas históricas de uma cidade nunca mais poderão desfrutar dos beijos calorosos de suas mães, pais ou irmãos. O último beijo que receberam foi o da morte. Os filhos daquelas mulheres que deploram não voltarão para casa. Ainda estrugem os telefones em cima dos corpos estendidos dos que pereceram; suas vozes não serão ouvidas novamente. As palavras perderam o sentido, assim como o estro poético.
             A poesia é bela e encantadora, mas as atitudes literárias nem sempre são  capazes de revelar a veracidade dos fatos. Estivemos diante de mártires e heróis, que perderam suas valiosas vidas devido à precariedade de um local e pela imprudência sem limite dos gananciosos. O Brasil é feito por indivíduos que se julgam acima do bem e do mal em suas ações. Fomos apenas testemunhas de uma tragédia anunciada.

Otávio Camilo

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